Cotidiano

Purgatório da beleza e do caos

Quase tudo já foi dito e publicado sobre o estupro coletivo de uma jovem no Rio. Pouco há a ser acrescentado. Julgo que as mulheres têm maior legitimidade e conhecimento de causa para debater o assunto. Minha filha Isabel integra um grupo de jovens que estuda e denuncia o feminicídio no Brasil, país no qual são mortas 13 mulheres por dia em crimes de ódio, colocando-se entre as nações com o maior índice de homicídios femininos. Ela me ensina que o feminismo vive sua terceira onda histórica, que começa felizmente a desaguar também aqui.

Vou participar dessa corrente de minha maneira. Vou ater-me ao texto postado pela jovem X. no Facebook no ano passado, que O GLOBO publicou. Bem escrito, com ideias originais e bom domínio da língua, o texto merece um exame no que ele tem de intuição e diagnóstico.

Intuição quando ela diz viver numa cidade na qual ?o roubo virou rotina, o estupro é culpa da vítima, onde mulheres apanham caladas?. É como se X., de forma dramaticamente premonitória, descrevesse o que viria ocorrer com ela própria.

O que me parece ainda mais profundo é o que esse texto tem de diagnóstico de nossas estruturas sociais. Lembra um rap do Emicida, enumerativo e caótico. País no qual ?a voz dos ladrões é mais alta do que a do povo, onde qualquer regra é driblada, onde negro não pode andar na rua sem ser confundido com um ladrão, onde um playboy bate no mendigo e não acontece nada?.

Vai em frente na realidade das comunidades na qual vive e convive, descrevendo a questão do tráfico nos seguintes termos: ?onde a mesma polícia vai na mesma favela e pega o dinheiro dos bandidos para garantir a segurança deles, onde polícia faz operação e usa todas as drogas apreendidas?. Talvez não seja o momento adequado, mas penso que devemos começar a debater com sinceridade a questão da criminalização das drogas. O desmonte das UPPs é evidente, e sabemos todos que o tráfico já retomou a maior parte das comunidades. Sem uma política de emprego e renda, não poderemos competir com a capacidade de cooptação que o tráfico proporciona. É ilusório continuar a travar o combate nos termos atuais. Estamos perdendo há décadas.

Recentemente, a Assembleia Geral das Nações Unidas publicou documento com mais de mil líderes mundiais pedindo o fim das políticas de controle das drogas. Entendem que a abordagem militar de combate às drogas fortaleceu o crime organizado e tem causado problemas de saúde e segurança mais graves que o consumo. Talvez seja oportuno começarmos a pensar nisso.

Descriminalizar significa não pôr o usuário na prisão. No Brasil, apenas pobres e pretos são presos com pequenas quantidades e entram para a universidade do crime que é o sistema prisional. É claro que essas mudanças devem ser feitas com cuidado e seriedade, envolvendo médicos, terapeutas, especialistas, assegurando uma rede hospitalar gratuita para o atendimento dos usuários e consumidores que necessitem. O investimento tem que se dar na prevenção e conscientização.

Prossegue X com sua metralhadora giratória sobre seu país e sua cidade, ?onde o dinheiro fala mais alto que qualquer vida, onde criança é jogada no lixo, onde cartões-postais viraram depósitos de lixo, onde aluno luta para sua escola continuar aberta, onde morremos esperando atendimento médico?. Há um tom apocalíptico perpassando todo o texto, mas não podemos deixar de reconhecer sua enorme parcela de verdade.

Ele lembra um conto do Rubem Fonseca. Uma mistura de ?Feliz ano novo? com ?O cobrador?. Puro diagnóstico. Um desfilar das consequências, sem teses ou teorias em imagens cinematográficas dessa cidade, purgatório da beleza e do caos. Cabe à sociedade agora, se quiser, modernizar a terapia.

Luiz Roberto Nascimento Silva é advogado e foi ministro da Cultura