RIO ? Sentar-se à mesa de um bar ou restaurante e observar o movimento logo revela a relação de certos funcionários com determinados clientes. O garçom, antes mesmo de ser chamado para anotar o pedido, vai até a mesa cumprimentar um, e ganha uma recepção calorosa. O gerente, atento, vê a família chegar e se apressa em buscar a cadeirinha para a criança que ainda nem entrou no salão. A recepcionista, ao atender o telefone, reconhece a voz de quem está do outro lado da linha. Tem profissionais que estão há tanto tempo na mesma casa que são quase personificações da marca. E foi atrás deles que a equipe do GLOBO-Barra saiu a campo. Recolheu belas histórias.
O Bar do Oswaldo, no Largo da Barra, está prestes a completar 70 anos e tem como parte fundamental de sua trajetória o trabalho de Gil, garçom da casa há 41 anos. Nem adianta perguntar por José Luiz Severino Barbosa. Os outros funcionários vão olhar sem entender bem quem você procura. O apelido é fruto de brincadeiras e chegou até os ouvidos dos vizinhos no Morro do Banco, onde Gil mora há mais de 30 anos. Ninguém o conhece pelo nome, garante, entre gargalhadas.
Gil chegou ao Bar do Oswaldo em março de 1975, indicado pelo cunhado. Aos 19 anos, o paraibano saiu de sua cidade, onde trabalhava na roça desde os 7 anos, para tentar a sorte no Rio. O primeiro emprego foi num hotel na Gávea, pertencente a uma família espanhola. O expediente durava 12 horas, e ele mal tinha folga. A mudança foi da água para o vinho ? ou melhor, para a batida. Com o novo trabalho, veio também uma nova moradia. O imóvel em que o Bar do Oswaldo funciona até hoje tinha um hotel no segundo andar, onde Gil residiu por nove anos, só saindo ao se casar. Outra mudança foi no cômodo onde antes ficava um sofá e, após ter duas paredes retiradas, ganhou mesas e duas grandes prateleiras. O ambiente, lembra, foi palco de um caso tragicômico.
? Havia dois casais nessa sala. Entrou uma moça e começou a gritar: ?Seu traidor!?. Era baixinha e soltou os bichos. Eu não a conhecia. Mas as pessoas começaram a comentar ?É a Elis Regina!? ? conta o garçom, que não sabe até hoje quem era o homem a quem a cantora dirigiu os impropérios e que já atendeu, entre outros famosos, Chacrinha e Mussum.
Ao longo de quatro décadas, Gil viu transformações no Largo da Barra também. O local bucólico tinha o bar como um símbolo de resistência enquanto a região se desenvolvia a passos lentos, com casas que abriam e logo fechavam, por falta de público. Um dos requisitos para fazer parte da equipe do Oswaldo era se manter firme diante de problemas como os calotes de grupos vindos de Ipanema, Leblon e Tijuca.
? Um grupo ficou muito conhecido. Já sabíamos até o que iam pedir. Tínhamos que ficar de olho, senão eles iam embora sem pagar. Um dia combinamos cercá-los. Pediram gim, que era o de sempre. Foram tentando sair e dissemos: ?Amigos, hoje não. Estamos observando vocês há um tempo. Não é a primeira vez que vocês saem sem pagar?. Depois, não é que ficaram amigos da gente e sempre pagavam? Tem que ter muito jogo de cintura ? conta Gil.
Sendo o mais velho da casa e com mais tempo de estrada, Gil viu gerações de clientes passarem pelo lugar, inclusive a da família do proprietário, Oswaldo, pai de Rommel e Adigail, que hoje tocam o negócio.
? Quando cheguei aqui, o Rommel ia fazer 10 anos. Às vezes, ele queria ir para a copa ajudar. Noutras, ficava esperando o pai ir para casa, até o final da noite. E tem cliente que vinha com o pai e hoje traz os filhos ? diz o garçom.
De frente para a praia, no Fratelli, Chicão também acompanha gerações se sucedendo nas mesas. O cearense Francisco Ferreira estava ali antes mesmo da inauguração. Ele trabalhava no antigo restaurante que funcionava no imóvel, e brinca dizendo que a família paulista dona do Fratelli o comprou com ele dentro, em 1988. Chicão também passou por outros estabelecimentos ao chegar ao Rio, aos 17 anos, incluindo a antiga churrascaria Carreta, em Ipanema.
Há quem nem precise fazer o pedido. Pela regularidade com que algumas pessoas procuram o restaurante, Chicão já sabe o que vão pedir. Com voz baixa e fama de discreto, ele conta que já viu no salão diversos pedidos de casamento e festas de aniversário, além de atender artistas:
? Até a Xuxa vinha aqui, mais no período da noite. Já vi muito o Tarcísio Meira. O Erasmo Carlos também.
O serviço no salão, na hora do almoço, fica a cargo de três garçons. Como os funcionários não têm áreas definidas, muitos clientes fazem questão de que o atendimento seja feito por Chicão.
? Quando mudo de horário, muitos perguntam onde estou. Tem uns que pensam que sou sócio, de tanto tempo que passo aqui ? diverte-se.
O mesmo acontece com o chef italiano Gennaro Cannone na rede Alessandro & Frederico. Enquanto transita pelo salão, ele chega a ser tomado por proprietário da marca. Não é para menos. Na rede desde sua criação, há 12 anos, ele desenvolveu o cardápio de massas, pizzas e pães artesanais e treinou as equipes de cozinheiros. Hoje, é um rosto familiar para a clientela, por ter saído de seu balcão de pizzaiolo e passado para o atendimento:
? Minha função é receber o cliente, bater papo. Ele se sente falando com a pessoa certa. O sucesso do Alessandro & Frederico está baseado no carinho, na educação e no respeito que é preciso ter. Comida, todo mundo serve. Serviço, todo shopping tem.
Gennaro, 61 anos de vida e 41 de profissão, chegou ao Brasil em 1998 para comandar a equipe da Capricciosa. Natural de Roma, conheceu o empresário italiano Fabrizio Giuliodori em 2000. Quatro anos mais tarde, com a inauguração do Alessandro & Frederico, a dupla deu início à parceria. Gennaro orgulha-se de ser o funcionário mais antigo e de dividir com Giuliodori a função de visitar, diariamente, as cinco unidades cariocas ? a marca tem ainda casa em Curitiba.
Para ele, a melhor receita é se empenhar e ficar atento ao retorno do público:
? Estou no salão porque gosto que o cliente me chame e me parabenize. Vou à cozinha e passo isso à turma.
PRATAS DA CASA
A calçada larga da Rua Helios Seelinger, na Barra, é um trecho convidativo para um passeio a pé. Enquanto o público desfruta um ritmo desacelerado, aproveita para cumprimentar os garçons da área externa da Academia da Cachaça, rostos bem conhecidos. Um deles, Tiago de Souza, garante que há quem volte de viagem e, antes de desfazer as malas, passe na Academia para se deliciar com a feijoada, prato feito pelas mãos de Maria Barbosa de Sá Costa há 25 anos. Tiago chegou ao emprego indicado pelo irmão, em 1989. Foram algumas idas e vindas, inclusive na loja do Leblon, até se fixar no quadro de funcionários da Barra. Em seu turno, o garçom atende um público variado. Alguns clientes, ele conhece há mais de 20 anos.
? Acho que recebi de Deus o dom de servir. Gosto de ser garçom. Tem um provérbio que diz: ?Quem não vive para servir, não serve para viver?. Gosto muito disso. Atendo uma família inteira que vem desde que entrei ? conta.
Outra prata da casa, Antônio Marcos de Vasconcelos começou numa vaga temporária de copeiro. Ficaria sete meses. Agora, 22 anos depois, Marquinhos é o barman titular da unidade da Barra, com algumas intervenções na do Leblon. O tempo também proporcionou aprendizado e mudança de cargo para o gerente Jorge Coutinho. A primeira função que teve foi servir bebidas para os clientes na fila de espera. Desde que chegou, em setembro de 1991, foi atendente, garçom e subgerente. Há dez anos, ministra um curso de caipirinha, diferencial que lhe rendeu a oportunidade de preparar as bebidas no lançamento do filme ?Velozes e furiosos 5?, no Arpoador, em 2011.
? Com isso, vou perdendo alguns clientes (que aprendem a fazer o drinque). Tem o lado bom e o lado ruim ? brinca Coutinho.
Até os bastidores da Academia da Cachaça preservam uma equipe fiel. No escritório, Danielle Viana de Sales cuida do financeiro há 12 anos. Renilda Helena de Oliveira também conta tempo, e história. À frente do serviço de bufê para festas, em 25 anos ela passou pela cozinha, pelo caixa e pelo escritório. No salão, o cenário é o mesmo.
? Outro dia chegou um cliente antigo e ficou olhando, preocupado, porque viu um garçom novo e pensou que a equipe tinha deixado o restaurante ? lembra o garçom Rigoberto Dantas de Lima, na casa desde junho de 1997. ? Era começo da noite, umas 18h, e alguns funcionários do turno do dia já tinham ido embora.
Jurandir Miguel Rondon chegou para reforçar o time em maio de 2001. Do bar do lado, do qual era funcionário, competia diretamente com os atuais colegas. Ele garante que a concorrência era desleal. A Academia lotava, e um dia, Jurandir foi convidado a fazer parte da equipe. Nem pensou duas vezes. No dia seguinte, vestia a nova camisa. A mudança trouxe experiências, inclusive a participação numa pegadinha organizada pelo apresentador Bruno de Luca.
? Foi uma homenagem para a mãe dele, no ?Domingão do Faustão?. Ele queria dar um susto nela, dizendo que ia ser pai. Naquele dia, o pessoal viu que tinha gravação, e a casa encheu no almoço. Eu ficava um pouco na pegadinha e um pouco aqui dentro. Um corre-corre danado ? lembra Jurandir.
Em Vargem Grande, não tem corre-corre. O ar bucólico do restaurante Quinta faz parte de um ambiente tranquilo e familiar. Não só pelos retratos e móveis do antigo proprietário, Luiz Knud Correia de Araújo, mas pela receptividade dos funcionários. Ambiente aconchegante, boa equipe e cardápio pautado pelo conceito de comfort food são elementos que fazem com que o cliente se sinta em casa. Mas o garçom Vicente Ramalho também já brilhou na televisão. Ele foi indicado para aparecer numa cena da novela ?Ti-ti-ti?, de 2010, por Luiz Antônio Correia de Araújo, filho do criador do Quinta e hoje proprietário da casa ao lado da mulher, Fátima Correia Dias.
? Contracenei com a Claudia Raia. Fui chamado para servir durante uma cena e apareci. Gostei muito. Queria estar até hoje acompanhando os atores (risos) ? conta Vicente.
A chegada ao Quinta, há 13 anos, foi por meio de uma indicação do antigo patrão. A churrascaria em que trabalhava fechou as portas, e, no dia seguinte, Vicente começou sua história na nova casa. Ele não poupa elogio aos patrões e à clientela. Sentindo-se realizado, destaca o carinho recebido:
? Não tenho do que reclamar. Cliente antigo, que já nos conhece, chama e pede para ser atendido por nós. Às vezes, isso não é possivel, mas nunca deixamos de cumprimentá-los ou de acompanhá-los até a mesa.
O ?nós? inclui a ex-auxiliar de professora Andréia Fernandes dos Santos, garçonete com o mesmo tempo de casa que Vicente. A atmosfera acolhedora a motivou. Tudo começou em 2003, com a indicação de uma prima que trabalhava no restaurante. Inicialmente, ela pensou em aprender um pouco sobre etiqueta à mesa e gastronomia, incluindo harmonização de vinhos. Mas foi ficando e não saiu mais. Na cozinha estão outras funcionárias antigas, as sorridentes Maria Cristina da Silva e Vera Lúcia de Campos, ambas há mais de uma década em seus postos.
O imóvel onde o restaurante funciona desde 1984 é a antiga residência do fundador. E o Quinta ganha ainda mais jeito de casa de família nos fins de semana. Andréia conta que a proximidade com o público foi conquistada ao longo dos anos. E diz, orgulhosa, que conheceu alguns dos pequenos frequentadores antes mesmo de eles nascerem:
? Tem crianças que eu conheci ainda na barriga. E pais que me pedem para atendê-los porque vêm a pedido dos filhos. Acabamos participando da vida das pessoas. Somos uma família mesmo.