Cotidiano

Famoso desconhecido: parceiro de Chico e Caetano, Cézar Mendes vive de aulas de violão

RIO ? Era uma das cantorias de Paula Lavigne ? encontro musical que a empresária realiza em seu apartamento ?, quando Cézar Mendes ouviu perguntarem ?quem é ele??. A cantora Ana Carolina disparou: ?Esse é o famoso que ninguém conhece?. Cézar riu.

Seu anonimato rendeu outro causo. Também na casa de Paula, dedilhava uma canção quando foi abordado pela atriz e cantora americana Queen Latifah, com ajuda de intérprete. ?De quem é essa canção??, perguntou ela. ?Minha?, respondeu ele. Latifah ficou encantada. E prometeu gravá-la. O que não ocorreu (ainda).

O leitor também pode desconhecê-lo, mas provavelmente já escutou composições suas. Procure saber: Roberta Sá em seu último disco (?Delírio?) registrou três, uma delas em duo com Chico Buarque (?Se for pra mentir?, com letra de Arnaldo Antunes); Gal Costa escolheu ?Amor, se acalme?, para o álbum ?Estratosférica?; Teresa Cristina assina com ele uma canção para seu próximo trabalho; a portuguesa Carminho apropriou-se de ?Sol, eu e tu?, de Cezinha com Caetano e Tom Veloso. O caçula de Caetano e Paula, de 19 anos, é seu mais novo parceiro.

No sofá, o baiano de Santo Amaro da Purificação, terra de Dona Canô, está sempre acompanhado do violão e de boas histórias. Qualquer papo com ele tem música.

? A música faz parte do Cezinha, é inseparável dele. E ele se relaciona com você a partir dela ? comenta Fernanda Torres, que já escreveu uma crônica sobre o músico, onde conta, por exemplo, quando ele descobriu por Dona Canô, em um programa de TV, que era neto de padre.

Gal

Carminho define Cezinha, de 65 anos, como uma ?alma musical?:

? O violão é a extensão de seu corpo, e sua presença simboliza toda boa energia que a música tem ou deveria ter.

Arnaldo Antunes, parceiro em canções como ?Itapuana? (gravada por ele em ?Saiba?) e ?Até o fim? e com quem gravou o álbum ?Qualquer?, diz que o som de Cezinha é ?à flor da pele?:

? Seu jeito de tocar tem uma intensidade rara, e suas melodias têm uma carga de tradição da canção popular, já nascem clássicas.

A relação com o violão veio ainda criança. Uma das irmãs ? de um total de oito filhos, incluindo o músico Roberto Mendes ? tocava o instrumento, mas guardava-o num armário que ele não alcançava. Um dia, aproveitou-se de um ?vacilo?. O pai, surpreso, deu outro à irmã. E ele chegou a ganhar prêmios em uma rádio ? ?sabonetes e talco?, ri.

?SACERDOTE DA MÚSICA?

Carminho

O violonista conheceu Caetano em Santo Amaro. Demorou, porém, até que se aproximassem. Um dia, ao ver Cezinha na rua e sabendo de seu apreço por música, Caetano convidou-o para uma festa. Na ocasião, conheceu Gilberto Gil.

? O grande clique do violão veio ali, com Gil.

E foi dando aulas que Cézar sobreviveu em Salvador quando foi para lá estudar ? ?e é assim que sobrevivo até hoje?, diz. Ao mudar-se para o Rio, há cerca de oito anos, continuou a ensinar violão. Entre seus alunos, estiveram Fernanda Torres (e os filhos e enteados) e Bem Gil, filho de Gilberto. Além de Vanessa da Mata, Maria Bethânia, Daniela Mercury e Margareth Menezes.

A arte da composição veio pouco antes da mudança, despertada por Paula Lavigne, num verão em Salvador.

? Ela perguntou: por que não faz uma música com Caetano? Ela só podia estar louca: nunca tinha composto e ia estrear com Caetano?

O violão é a extensão de seu corpo, e sua presença simboliza toda boa energia que a música tem ou deveria ter

No mesmo dia, no ônibus de volta para casa, no bairro de Itapuã, nasceu uma melodia. Quando chegou em casa, ligou para Caetano, assoviou a música e desligou. Um ano depois, a primeira parceria seria faixa-título do álbum de Gal Costa ?Aquele frevo axé?, de 1998.

? Cezinha guardou a música toda em sua alma, intuitivamente entendendo os mistérios da harmonia. O som do seu violão apaixonou santamarenses, baianos, brasileiros e estrangeiros. Suas composições são música sentida por dentro e vão direto ao nosso coração ? diz Caetano.

?Aquele frevo axé? foi o pontapé. Depois, com Carlinhos Brown, saiu pela primeira vez do Brasil. Foi ele quem o apresentou, em seguida, a Marisa Monte. Viajaria de novo, em curtíssima turnê europeia com o fenômeno Tribalistas, com Brown, Marisa, Arnaldo e Dadi Carvalho.

É de Cezinha a melodia de duas das canções mais belas desse repertório: ?Pecado é lhe deixar de molho? e ?Carnalismo?.

? Cézar é um devoto sacerdote da música, com a qual mantém relação existencial. Vive com o violão no colo. Tem um senso harmônico intuitivo, um ritmo próprio, sabe construir parcerias e escutar o desejo das canções ? sublinha Marisa.

Roberta Sá

Assim como integra as famílias de Paula e de Fernanda, entrou para a de Marisa.

? Como Paula brinca, Cezinha é mobília. O parente que todo mundo queria ? brinca Fernanda.

Compor é um processo difícil para Cezinha. Não consegue fazê-lo sob encomenda, nem musicar uma letra. E, mesmo quando a melodia vem, fica um tempo até se certificar de que não é plágio. Já quase aconteceu. Numa viagem de Ano Novo com Fernanda, dedilhou uma melodia. E a convidou para colocar letra. Tempos depois, com ajuda de Marisa, percebeu que um trecho era igual a ?Cantoras do rádio?.

A produção segue. Com Capinan, outro parceiro recorrente, e Tom Veloso, fez mais uma recente, ?O tempo apagou minha ilusão?. Com Arnaldo e Tom fez mais uma, ainda sem título, que pode entrar numa próxima novela.

Cezinha diz nunca ter ouvido sua obra no rádio. Dá raras entrevistas. Expectativa de fama, não tem.

? Não dou ousadia ? solta, em gíria baiana (algo como ?não dou atenção?). ? Minha contribuição é minha música. Tenho a sorte de ter parceiros geniais e conhecidos. Fico como o famoso desconhecido, e é ótimo.

Tenho a sorte de ter parceiros geniais e conhecidos. Fico como o famoso desconhecido, e é ótimo

Dinheiro, ?nunca soube ganhar?. Bens, não tem. No apartamento simples em Ipanema, vive de bermuda e chinelo, com andar arrastado, sem camisa. Sua única ostentação são os anéis de prata e as pulseiras de couro ? itens que adora e sempre ganha dos amigos. Como quem pensa em tudo o que viveu, olha para o nada e diz:

? Não tenho muita coisa, não sou apegado a nada. O que mais prezo e me faz feliz é o círculo de amizades que eu tenho.

Nas paredes de seu apartamento, chama a atenção uma carta emoldurada de Caetano, para o programa de um show que faria em Salvador (?Ouçam-no, prestem atenção, porque tudo que ele toca e canta é sempre musicalmente verdade?). E destacam-se dois retratos seus ? um com a atriz americana Amy Irving e outro, sozinho, numa piscina. Ambos clicados pelo cineasta Pedro Almodóvar, sem ele saber, em uma viagem à Bahia.

O tempo se confunde na cabeça de Cezinha. Não tem exatidão sobre o ano ou sua idade nos fatos, a não ser quando o assunto é Itapuã:

? Foram 25 anos morando lá, e sei exatamente o dia em que cheguei e em que saí. Quando vou a Salvador não saio dali. Só ando de sunga, a chave presa ao cordão e o dinheiro enroladinho. E isso é tudo que preciso.