Opinião

O amor condicionado

Mesmo as emoções aparentemente ruins devem ser bem-vindas no desenvolvimento mental saudável, desde a tenra idade. A raiva e a frustração não são agradáveis, mas precisam estar presentes, no momento da birra, sendo que esta não é sinônima de ser mal-educado. Em verdade, a raiva é positiva no sentido de evidenciar o desconforto diante de situações que violam e invadem o bem-estar. Contudo, a sociedade reprime comportamentos desagradáveis, especialmente, em uma época de felicidade forçada das redes sociais, em que o “bom dia” tem que ser com um sorriso no rosto e um café instagramável.

Por muito tempo, crianças foram vistas como “mini-adultos” e tinham a obrigação de cumprir os comportamentos desejáveis, com corpos programados para a reprodução da fertilidade produtiva, ou seja, corpos dóceis e quase robotizados para a reprodução de atividades em prol de lucro. Nos últimos anos, porém, os corpos domesticados dão espaço a mentes facilmente colonizáveis para a perpetuação de condutas produtivas, ainda que isso possa levar, a médio ou longo prazo, ao abismo da depressão, para indivíduos de qualquer idade.

Curioso que sempre quando se refere à maldade, à opressão e à violência, está sempre no “outro”, um ser invisível e sem identificação, algo genérico, que não define, mas alivia a culpa da identidade individual. Acontece que, mesmo em relações familiares, norteadas pelo afeto, é possível haver violação à dignidade do outro, sem nem mesmo erguer a voz ou a mão: se dá pela desqualificação da autoestima do outro. Pais obcecados pela perfeição exigida pela sociedade (e inalcançável) podem impor modelos de condutas nada razoáveis a sua prole, incidindo em um desgaste emocional que põe em xeque à criança e ao adolescente a sua identidade. É o que se convencionou chamar de “gaslighting”, uma forma de manipulação em que se busca convencer a vítima de uma realidade, de percepções e memórias que favorecem o agressor.

Fruto de diferenças de poder, esse termo é comumente empregado em relações abusivas entre homem e mulher, mas é possível sua aplicação em qualquer espécie de relacionamento. No caso da violência sobre menores, os efeitos são mais nefastos tendo em vista que não há possibilidade de compreensão da manipulação e acaba por culpabilizar a si própria. Aliás, a culpa é a principal ferramenta dessa espécie de violência emocional, juntamente com o ato de subestimar qualquer qualidade ou ato do filho e com o isolamento social, a fim de vetar a independência dos filhos. O amor incondicional torna-se condicionado, a criança e o adolescente devem cumprir os caprichos emocionais dos pais para receber afeto, como moeda de troca.

Nem sempre isso é intencional para ferir. O olhar sem compaixão para a infância e para a adolescência, como épocas de birras e rebeldia, muitas vezes é apreendido em uma corrente familiar. Pais feridos são sobreviventes e, geralmente, sangram sobre sua cria, podendo reproduzir padrões de violência de forma consciente ou não.

A violência psicológica também deixa marcas e precisa ser denunciada. No caso de relações intrafamiliares, há amparo pela lei Maria da Penha, aplicável nas relações domésticas ou em qualquer relação íntima de afeto, além do Estatuto da Criança e do Adolescente. Em nome da dignidade de seres em desenvolvimento da personalidade, é imperioso o resguardo do menor de qualquer situação de violência, enquanto competência do Estado, da família e da sociedade.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas