Opinião

Coluna Direito da Família: A lebre não dorme

Na fábula de Esopo, a lebre descansava tranquila, pois não acreditava na mínima possibilidade de derrota para a tartaruga. Debochava, pois acreditava na premissa da superioridade de sua espécie quanto à velocidade. Na guerra dos sexos, a estrutura patriarcal posta há séculos garante certa tranquilidade à lebre, pois, encontra uma estrutura que lhe garante benefício, contudo, aquela não adormece. Ela sabe que a normalização de condutas e corpos não é lei matemática ou natural, mas antes construção social, de modo a poder ser desfeita a qualquer tempo.

Há aqueles que aventam o pleito pela inversão dos privilégios, diante de um mundo invertido e anárquico, sendo que a necessidade é de equidade de gênero, em prol da realização da justiça social. É garantir, com isso, a distribuição equânime de ferramentas, capazes de tornar sutis as diferenças pautadas por gênero, por meio de políticas públicas que favoreçam a igualdade entre homens e mulheres, no seu papel enquanto cidadãos.

Igualdade essa que não se dá a partir de tábula rasa que mede todos com o mesmo padrão. A isonomia se alcança mediante o tratamento desigual aos desiguais, na medida de sua desigualdade. Por esse motivo, a aplicação da lei de violência no âmbito familiar protege, em larga escala, as mulheres (não havendo impedimento de gênero inverso); os alimentos conjugais se destinam ao cônjuge que se dedicou à fundação imaterial do relacionamento e não tem mecanismos de adentrar de imediato no mercado de trabalho (em geral, a mulher) ou ainda a preferência da guarda e companhia dos filhos menores à mulher, pelo estabelecimento de sua figura enquanto cuidadora.

Soam como privilégios, quando são instrumentos para o equilíbrio da relação massivamente desigual. A desigualdade torna-se mais latente para aquelas que se tornam mães. Romantiza-se tanto a maternidade para que haja culpa pelo não cumprimento do papel perfeito de assumir quase em plenitude a carga de responsabilidade com relação à criação de um novo ser humano. Mas, ao mesmo tempo, excluem-se aquelas que não se encaixam no padrão da maternidade vinculada à conjugalidade.

Olhos assombrados para um casamento pontual entre uma adolescente e um idoso que são cegos à absurda realidade dos números dos casamentos de menores no Brasil, enquanto maior em números absolutos na América Latina, e a questão da gravidez na adolescência. Vale destacar que é permitido o casamento a partir dos 16 anos, sendo que até a maioridade exige-se a autorização de ambos os pais. Permitia-se o casamento de crianças em caso de gravidez e para evitar a punição por crime, o que foi abolido desde 2019.

E o absurdo diz-se que é o quanto as mães esbanjam com as pensões “milionárias” de terços do salário mínimo ou quando desejam exercer maternidade responsável com métodos de esterilização, sem o consentimento do cônjuge. Nesse ponto, vislumbram-se avanços com a nova lei que dispensa o consentimento e reduz a idade mínima para o procedimento, em consonância com o cumprimento da dignidade humana e da igualdade de gêneros.

A tartaruga só não ultrapassou a lebre porque o fardo que carrega e as amarras das estruturas sociais ainda são pesados, envoltos de moralidade aristocrática e patriarcal, e porque a lebre está em vigília para a manutenção do status quo que lhe favorece.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas