SÃO PAULO ? O que acontece antes e durante qualquer ação humana? O que gera uma fala, um silêncio, um gesto, um movimento ou um ficar de pé imóvel? Que situação ou, falando de teatro, que cena gera um acontecimento? O teatro da diretora alemã Susanne Kennedy nos leva a perguntas como essas e nasce, como ela própria diz, justamente desse tipo de questionamento:
? Me interessa observar esse momento em que alguém surge num espaço, ou no palco, e começa a falar, a agir, ou o momento que antecede a fala, ou seja, a situação em que a pessoa se encontra ? diz ela. ? Me interessa analisar a condição humana de estar em um determinado espaço, e também no palco. São essas questões que sustentam a encenação “Por que o senhor R. enlouqueceu?”, peça-instalação concebida pela diretora a partir do roteiro do filme homônimo (“Warum läuft Herr R. Amok”, em alemão), de R. W. Fassbinder. O trabalho, que faz sua última apresentação hoje à noite na MITsp, se apropria do longa e cria, a partir dele, um universo de ações, imagens e sons um tanto singular, intencionalmente estranho ao senso comum. O cenário e os figurinos são, ao mesmo tempo, austeros e carregados de detalhes específicos, e em conjunto nos lançam a um espaço-tempo excêntrico, deslocado, uma mistura indefinível de passado e de presente que é resultado de sua capacidade de descombinar e justapor formas e signos reconhecíveis.
Na peça, tudo acontece num mesmo espaço cênico, uma sala amadeirada e asséptica, que comporta situações e lugares onde a espera, o vazio e o nada convivem: o balcão de um bar ou de uma loja de discos, a sala de espera de um consultório médico ou a sala de estar de um vizinho; mas o que singulariza o teatro de Susanne, um dos mais respeitados da cena contemporânea alemã, é a forma forma como tais espaços são habitados pelos atores.
Nas suas mãos, os atores são revelados como figuras ou imagens não realistas de seres humanos, e suas ações estão a serviço da construção de um teatro não expressivo, frio, quase “anti teatral”, pois avesso à teatralidade dramática e proibitivo a exageros interpretativos.
Em seus rostos, os atores carregam máscaras de silicone, aplicadas a fim de anular suas feições e expressões. Também não lhes é permitido a expressão através de suas vozes ? em cena os atores “apenas” emulam, milimetricamente, os sons pré-gravados de todas as falas do roteiro.
Este, por sua vez, é composto de uma sucessão de quadros/cenas incompletos, preenchidos por conversas e perguntas deixadas em aberto, inconclusivas, e a um só tempo banais e fundamentais: “Por que você está sendo agressivo?”, pergunta a mulher do senhor R. “Eu não estou sendo agressivo…”, desvia ele. Os gestos e movimentos que acompanham tais falas, ou as cenas de silêncio, são erráticos e instáveis, porém contidos. No fim, cada elemento cênico é precisamente escolhido e organizado, e faz do teatro da diretora algo que poderia ser classificado como um laboratório de microanálise das mais básicas manifestações humanas.
? Quando comecei a criar essa peça estava interessada em analisar essas cenas de todo cotidiano, os detalhes de cada situação que constituí as nossas vidas, e que normalmente são considerados momentos banais, estúpidos ou chatos, como comer na cozinha, ouvir uma estação de rádio qualquer, ter intermináveis conversas sobre o nada ? diz Susanne. ? Reuni tudo isso que podemos considerar anti teatral. Foquei naquilo que, comumente, o teatro deixa de lado, esquecido. O teatro é sempre um tanto sobre conflitos, dramas, e está sempre focado em conteúdos, no que as pessoas estão dizendo ou falando, e esquece de olhar para as coisas que vêm antes disso tudo, antes da fala, a condição ou a situação que gera uma fala. Então essa peça se trata de uma série de questionamentos sobre a linguagem.
Durante os ensaios, interessava a diretora observar atentamente movimentos considerados básicos e, também, essenciais, mas com o objetivo último de perturbá-los, e de retirar o corpo humano de seu funcionamento comum, regulado. Em cena sua obra assemelha-se a um possível cruzamento entre o naturalismo do clássico “Jeanne Dielman, 23…”, de Chantal Akerman, com as estilizações dos filmes do sueco Roy Andersson. Ambos, minuciosos exames do comportamento e das disposições humanas em ambientes e condições de baixa vitalidade.
? Como se caminha? Como se fica de pé? como se senta numa cadeira, e claro, como falar? O que faço é uma análise profunda sobre situações normais, com o objetivo de dissecá-las e questioná-las, a fim de ir a fundo nas condições humanas mais básicas ? diz. ? Então com certeza não tem a ver com provocar. A forma teatral não é escolhida como uma forma de ir contra o que as pessoas esperam. O que estou tentando fazer é ir fundo em certos sentimentos, me conectar com as pessoas e estabelecer uma jornada em comum.
Em “Por que o senhor R. enlouqueceu?” acompanhamos uma sucessão de quadros que revelam tais situações cotidianas e aparentemente banais. Como empregados de um mesmo escritório expressando platitudes sobre o bom ambiente de trabalho. Um homem que entra numa loja de discos e tenta, por estratégias absurdas, relembrar uma determinada canção. Um médico que examina um paciente que não sente nada. Superficialmente desprovidas de finalidade e vazias de sentido, cada cena concentra um enigma, e acumuladas ao longo do tempo da encenação (2h10m) pouco a pouco expressam, em alta voltagem, os possíveis motivos que levaram o tal senhor R à loucura: a falta de sentido ou o absurdo da existência? O vazio existencial de cada ser humano, que precisa ser obsessivamente preenchido ou calado por qualquer palavra, ação ou trabalho? Que condição de vida a vida contemporânea tem nos oferecido? A vida tem sido sã ou enlouquecida? E quem reage violentamente contra tudo isso, é louco ou são? Somos o quê?
? Muitas pessoas dizem que o senhor R. comete seus assassinatos porque a situação se torna absolutamente insuportável ? diz. ? Então há essa questão de pensar no que significa assistir a alguém que apenas existe, mas mal existe, porque está absolutamente preso a uma condição.
E é nesse sentido que o seu teatro, extremamente formal e preciso, expressa uma severa e rígida crítica à normatização e à robotização dos corpos e da vida humana. Em “Por que o senhor R. enlouqueceu?”, o finado Fassbinder revela, através de Susanne Kennedy, o quão inquietante e insuportável é a vida mortificada.
? Penso frequentemente nessa relação entre poética e política, e se há, no fim das contas, uma diferença entre o poético e o político. Se o que é poético não é político, e vive-versa ? diz ela. ? Penso a política, de algum modo, como uma forma de levantar questões sobre o sistema em que você está vivendo. Qual é o seu papel nesse sistema? Como você se relaciona com ele? E podemos começar a refletir sobre isso a partir das coisas mais básicas. Como o corpo se move ou se comporta dentro do sistema neoliberal? Como esses sistema afeta, e o que ele causa no seres humanos? São aspectos bem básicos e talvez, num certo sentido, nem seriam considerados como aquilo que chamamos de político. O político é reconhecido sempre do mesmo modo: falar o máximo possível sobre uma situação, sobre o que está errado. Mas existem outras formas de lidar com essas questões, formas que, na minha opinião, são bem mais complexas, além de capazes de incorporar a dimensão poética.