Cotidiano

Márcio Bulk investiga sua condição de 'estrangeiro' em 'Tramundo'

65524861_SC 02-03-2017 Márcio Bulk.jpgRIO – Márcio Bulk se descreve como um
cara de Nova Iguaçu, com família de Itaperuna:

? Tenho aquela coisa caipira, de
acordar às 4h30m pra aguar planta, de chegar meia hora antes em qualquer
compromisso ? lista, dando exemplos perfeitos de anticarioquice.

A sensação de se ver como
estrangeiro no Rio convive com ele, portanto, desde que chegou à cidade aos 19
anos ? hoje tem 45. Mas essa sensação corria subterrânea, enquanto Bulk se
misturava a uma nascente cena musical carioca (e brasileira). Primeiro por meio
de seu blog Banda Desenhada (no qual entrevistou muitos artistas da geração
2000), depois como produtor de projetos como o tributo a Jards Macalé ?E volto
pra curtir? e como compositor/parceiro no EP ?Banquete? (com arranjos de Cadu
Tenório e parcerias e participações de artistas como Alice Caymmi, Bruno
Cosentino, César Lacerda e Lívia Nestrovski). Ou, mais recentemente, o
lançamento em fevereiro do single ?Muito?, releitura da canção de Caetano Veloso
feita por Cosentino ao lado do guitarrista Marcos Campello: ‘Muito!’ – Bruno Cosentino e Marcos Campello

? Fui reouvir a discografia toda
de Caetano, até que bati nessa música linda ? conta Bulk. ? Nos projetos
anteriores, eu já flerto com a chamada música experimental, de improviso, e no
encontro dela com a canção. Pensei que funcionaria ter Bruno, com sua voz
sedutora, lânguida, que tem a ver com a canção, ao lado de um arranjo mais seco
de Campello. Nossa escuta está muito acostumada ao formato da canção do rádio.
Acho importante repensar isso.

Nos últimos anos, porém, Bulk
começou a investigar sua condição de estrangeiro, mergulhar nela. Dessa pesquisa
para dentro de sua história familiar e das referências que a cercam, nasceu
?Tramundo?, álbum que ele prepara com letras suas que se tornaram canções pelas
mãos de compositores como Ná Ozzetti, Zé Manoel, Thiago Amud, Luiza Brina, Joana
Queiroz, Bruno Cosentino e Pedro Carneiro. Um apanhado representativo ? entre
São Paulo, Rio, Minas Gerais e Pernambuco ? de alguns dos artistas que mais e
melhor têm ampliado e renovado os limites da canção.

? Em 2014 escrevi uma letra sobre isso, sobre ser estrangeiro, sobre saudade,
sobre (a orixá) Nanã, que é a origem e o fim de tudo; de seu barro que
surge o homem e é pra lá que ele volta ao morrer ? conta Bulk,
referindo-se aos versos musicados por Antônio Loureiro (?Saudade/ Beba dessa
água salobra/ Vista-se de retalhos/ Mulher de trapos/ Tua sina é o musgo/ O
lodo, o limo?). ? Gostei daquilo, vi que poderia render mais coisa. Comecei
então a pesquisar. ?Tramundo? é a tentativa de criar uma história familiar sem
ter conhecimento total dela.

O nome ?Tramundo? vem de uma série de poemas de García Lorca (?Trasmundo?).
Mas o caminho que levou Bulk à terra de vaqueiros, violeiros, taperas e
goiabeiras que ergue em suas letras começa em Manoel de Barros e deságua em
Guimarães Rosa.

? Quando caí em Guimarães Rosa, veio um deslumbre, ?ele está dizendo tudo que
preciso?. Minas tem tudo a ver com aquela região do Norte Fluminense, Itaperuna.
Chorava lendo ?Manuelzão e Miguilim?. E comecei a fazer as letras e percebi que
estava criando um mundo ali. Tem a música do galo, do cavalo, da viúva, da
mina… Cheguei assim às 17 canções.

Colagens para ilustrar memórias irreais

O trabalho gráfico do disco ? as gravações começam em maio e o lançamento
está previsto para o fim do ano ? inclui colagens feitas por Bulk que traduzem
visualmente esse universo de ?Tramundo?.

? Inicialmente pensei em ir pra esses lugares, pros interiores, pras grutas.
Mas não sou bom disso, acabei entendendo que, como o projeto parte da ideia de
apropriação, podia me apropriar desses lugares e ressignificá-los ? explica. ?
Comecei a pesquisar no Google imagens feitas por viajantes. Encaixei-as criando
paisagens diferentes, irreais, pensando em como estava fazendo isso com a
memória, distorcendo-as, criando um sertão imaginado.