Os governantes, regra geral, padecem de grave doença: a podernite. Que afeta, sobretudo, membros do Poder Executivo, a partir do presidente da República, governadores e prefeitos, podendo, ainda, pegar protagonistas de outros poderes e os corpos da burocracia.
Como todas as ites, trata-se de uma inflamação, que, em vez de atacar o corpo, invade a alma. Podemos designá-la como a “doença do poder”. Se alguém quiser associá-la ao egotismo, a importância que uma pessoa atribui a si mesmo, está correto, pois os conceitos são próximos.
O presidente Bolsonaro, vez ou outra, avisa que o poder é dele. Inclusive, o poder da caneta BIC, substituída pela caneta Compactor, quando tomou conhecimento que a primeira é de origem francesa. (Bolsonaro, lembremos, azucrinou o presidente Emmanuel Macron por conta da questão amazônica). O STF, nos últimos tempos, tem pontuado: em última instância, o poder é nosso. A decisão de conceder aos delatados a condição de serem os últimos a falar nas investigações da Lava Jato é um exemplo do poder da última palavra.
O Legislativo, assustado com a invasão de suas competências e queixoso da debilidade do governo na frente da articulação política, assume papel de protagonista principal em matéria de reformas. Nesse ciclo de grandes interrogações, cada qual quer ter mais poder. Até porque, no vácuo, um poder toma o lugar de outro.
O poder traz fruição, deleite, sentimento de onipotência. Governantes e até burocratas se acham donos do pedaço, tocados pela ideia de que são eles que conferem alegrias e tristezas, fecham e abrem horizontes, fazem justiça.
A podernite tem graus variados de metástase. Nos homens públicos qualificados, talhados pela razão, os tumores são de pequena monta. Nos estados mais desenvolvidos, com culturas políticas mais evoluídas, a doença não se espalha muito porque as críticas da mídia e de grupos formadores de opinião funcionam como antivírus. Nos estados menos aculturados, dominados por estruturas paternalistas e sistemas feudais, a doença geralmente chega a graus avançados.
O primeiro sintoma da doença é a insensibilidade. Só ouve o que quer ouvir. O grito rouco das ruas é para eles uma sinfonia distante. Da insensibilidade deriva a arrogância. Governantes se transformam em soberanos, querendo que cidadãos vistam o manto de súditos e achando que os programas governamentais constituem um favor e não um dever. Nessa esteira, desenvolve-se o assistencialismo, com pequenos sacos de migalhas distribuídas a esmo.
A construção da identidade de um governo transforma-se, assim, em culto à personalidade, sob os aplausos da plêiade de amigos e oportunistas. Alguns governantes descobriram as vantagens das redes sociais e capricham no envio de mensagens, vídeos e fotos sobre sua performance, desprezando a sábia lição de nossos avós: “elogio em boca própria é vitupério”.
O obreirismo inconsequente também passa ser eixo das administrações, no fito de fixar marcas. E é porque faltam recursos. Vivemos momentos de quebradeira geral. Mas o “balonismo pessoal” (fenômeno de enchimento do balão do ego) é impulsionado por levas de áulicos. Ocorre que o Produto Nacional Bruto da Felicidade – o PNBF – não sobe. Os bolsos continuam secando. E a indignação social se expande.
Por isso, as pessoas se afastam dos governantes. Só mesmo grandes sustos – como queda de popularidade – os trazem à realidade. Nesse momento, percebem que o poder é uma quimera. Volta-se contra eles mesmos.
Senhores, essa é a dura realidade: a glória mítica de palanques, os palácios, os ministérios e as instâncias da Justiça são coisas passageiras. Mudam como as nuvens. (A propósito, as caravanas que pediam Lula Livre hoje se mobilizam para pedir o Lula Preso. Porque, da sede da PF em Curitiba onde está, ele consegue fazer mais barulho do que em seu apartamento de São Bernardo do Campo). Eita, Brasil mutante, ou se quiserem, Brasil do chiste.
Só faltava esta: o procurador de Justiça de Minas Gerais Leonardo Azeredo dos Santos ganha R$ 24 mil mensais e garante que essa quantia é um “miserê”. O que dirão os milhões de brasileiros desempregados ou aqueles que põem no bolso o mísero salário mínimo?
Os pacientes de podernite agem como Vespasiano, o Imperador, que, à beira da morte, ficava gracejando numa cadeira: Ut Puto Deus Fio (Parece que Me Transformo num Deus).
Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação – Twitter@gaudtorquato
Ocorre que o Produto Nacional Bruto da Felicidade – o PNBF – não sobe. Os bolsos continuam secando. E a indignação social se expande