Opinião

A colheita do caminho dos sonhos

Embora as questões afetivas tenham ganhado novo fôlego no âmbito familiar, as disposições patrimoniais voltam à tona com certa frequência, na discussão sobre dívidas, alimentos ou mesmo no caso da morte. Quando o assunto é dinheiro, nem mesmo os laços mais duradouros passam ilesos, especialmente no momento da partilha dos bens do falecido. O luto pode dificultar ainda mais as discussões patrimoniais e financeiras, pois isso dá um ar de coisificação às lembranças de uma pessoa amada.

Com o falecimento, o patrimônio transmite-se imediatamente aos herdeiros, mas como um todo, indiviso. Para que possa ser determinado quem receberá e em qual quantia, é imprescindível a realização de inventário. Este tem a finalidade de definir os bens, as dívidas e os herdeiros, para, então, haver a partilha. A divisão pode decorrer das disposições legais ou da vontade do falecido, por meio de testamento.

Não se tem mais aquela antiga possibilidade de deserdar a torto e direito, sendo que a lei estabelece casos bem pontuais, na prática de injustos e gravíssimos contra o autor da herança (ofensa física, injúria grave, relações ilícitas com madrasta ou padrasto,…) e com determinação judicial. Porém, é possível deixar uma manifestação de vontade para destinação da parte disponível do patrimônio. Há uma quantia, portanto, que não está sujeita a disposição de vontade do testador, que se chama “legítima” e corresponde à 50% do patrimônio. Essa quantia obrigatoriamente se destina aos chamados herdeiros necessários (descendentes, ascendentes, cônjuge ou companheiro), na ordem de vocação hereditária.

Ao cônjuge e companheiro, ainda, é possível, dependendo do regime de bens aplicável, o direito à meação, isto é, o direito à metade sobre o bem, não como herança, mas como copropriedade. Se o bem é comum a ambos, a parcela do cônjuge sobrevivente não pode ser objeto de herança, pois não é possível herança de pessoa viva. Assim, um testamento pode ser válido sobre a parte disponível em que não mencione o cônjuge/companheiro, mas este pode ter direito à meação.

Não são incomuns pessoas que buscam bloquear atos dos pais ou avós para não terem prejuízos em suas heranças, mas vale lembrar que o Direito garante a autonomia privada do indivíduo sobre seus bens. Assim, a pessoa pode investir tudo e perder tudo, não tendo herança ou legado a entregar em virtude do seu falecimento e isso não configura ato passível de nulidade ou de insanidade.

O proprietário, enquanto membro de uma relação familiar, não pode deixar desamparados os seus em suas obrigações de sustento, como os filhos menores ou incapazes ou o cônjuge/companheiro, em comunhão plena de vida. Todavia, cumpridas as suas obrigações, não há impedimento legal ao dispêndio de seus bens em investimentos ou no desfrute de uma vida boa, salvo quando configurar prodigalidade (gastos excessivos que põem em risco o seu próprio sustento).

Colhem-se, pois, os infinitos caminhos marcados pelas lágrimas de quem sofreu o lúcido pranto dos sonhos, como lembrava Cecília Meireles, mas colhem também os hábitos e as virtudes que serão repassadas em forma de novos caminhos e novas aventuras, no eterno ciclo da vida.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas