Esportes

Nos Jogos de Sydney-2000, clima festivo se casou com espírito olímpico

2000-095651-_20001222.jpgDe qualquer ângulo e sob qualquer aspecto ? organização, atmosfera, hospitalidade, instalações, astral ?, Sydney foi um deleite.

Quem não gosta de ser acolhido com alegria sem frescuras? A versão tropical do idioma inglês começava com o irresistível G?day (bom dia) e resolvia eventuais entraves com um apaziguador no worries. O clima geral naquele país fanático por esportes era de satisfação por estar recebendo os Jogos.

O entusiasmo com que mais de 16 mil profissionais de mídia (5.298 de jornais e revistas, 10.735 de TV e rádio, além de 5 mil operadores técnicos) cruzaram mares e continentes para estar em Sydney contou com forte incentivo visual. O chamariz foi o número especial da revista de arte Black&White, dedicado à equipe olímpica australiana. Editada em Sydney e disponível nas grandes livrarias de cidades cosmopolitas, a publicação selecionara 29 homens e mulheres da esquadra do país-sede para fazer uma ode ao corpo atlético. Dorrit Harazim, a série

Todos foram fotografados vestindo um mesmo uniforme: o próprio corpo nu, atlético e esplêndido, ora em movimento, ora captados quando parecem parar o tempo. As fotos mesclavam o rigor da germânica Leni Riefenstahl com pitadas da cultura solar australiana e resultaram num memorável ensaio imitado, desde então, por vários fotógrafos de outros países. Nenhuma das imitações deu certo. A edição de 2000 tinha por título The Sydney Dream, era sequência do piloto lançado para os Jogos de Atlanta quatro anos antes, e vale a pena ser revisitado até hoje. Continua disponível on-line por menos de US$ 20.

Em Sydney coube ao porta-bandeira da delegação de quatro atletas da Guiné Equatorial tornar-se a primeira celebridade instantânea com uma receita não planejada. Eric Moussambani saiu do anonimato no quarto dia dos Jogos ao quase afogar-se perante as 17 mil pessoas que assistiam à série de eliminatórias da nobilíssima prova dos 100 metros nado livre, no International Aquatic Center. Outros 3,5 bilhões de telespectadores globais também puderam acompanhar o feito.

O nadador chegara a Sydney como um dos chamados wild cards, ou atleta convidado, presentes em todos os Jogos. Segundo normas adotadas pelas federações de atletismo e natação, é permitido ao país que não tem atletas com índice olímpico credenciar dois competidores ? um homem e uma mulher ? para disputarem uma prova individual cada. Independentemente das respectivas qualificações ou habilidades. Tudo em nome do espírito olímpico universal.

Ao pinçar Moussambani, a Guiné Equatorial deu de presente para a mídia um personagem de biografia irresistível sob medida. E todos a consumiram com voracidade a partir do momento em que o nadador levou 1m52s72 para perfazer os 100 metros da prova ? com esse tempo, o holandês Pieter van den Hoogenband, que conquistou o ouro na final, atravessaria a piscina quatro vezes e meia.

Como os dois adversários do africano na eliminatória haviam sido desclassificados por queimar a largada, ele teve de se arrastar completamente sozinho na piscina, tornando sua performance ainda mais surreal. Ao final, tendo abandonado o último vestígio de qualquer estilo, nadava cachorrinho. Mas completou a prova. Saiu cabisbaixo, acenou timidamente para a arquibancada que o aplaudia sem parar, e, segundo o historiador olímpico David Wallechinsky, foi chorar no vestiário.

40267210_10092000 - Ivo Gonzalez - ESP - Olimpíadas 2000-Sydney Austrália - Tenista Gustavo Kuerten.jpgNo dia seguinte tornara-se celebridade mundial, ganhara patrocínio e maiô pele de tubarão da Speedo, um apelido (?a Enguia”) e uma agenda lotada de pedidos de entrevistas. Soube-se assim que em criança ele nadara com crocodilos e que até então jamais havia visto uma piscina olímpica ? a maior em seu país tinha 20 metros. Mas não desistiu. No Mundial do ano seguinte realizado em Fukuoka, Japão, lá estava Moussambani, prudentemente na prova mais curta de 50 metros. Conseguiu chegar seis segundos à frente de um competidor de Antígua.

Pelo menos uma coisa era certa: sobre a Enguia não pairava a suspeita de doping, vírus que a cada nova edição dos Jogos mais contaminava os pódios olímpicos. Em Sydney 18 atletas e 2 técnicos foram expulsos dos Jogos por malfeitos envolvendo a fraude. Outros 40 foram barrados por testes com resultados positivos feitos antes de chegarem à Austrália.

Não por acaso, à última hora, 27 competidores chineses haviam desistido de comparecer aos Jogos e nenhum recorde mundial nas pistas de atletismo foi batido em Sydney. O aviso da introdução dos temidos testes capazes de detectar a presença do hormônio sintético EPO (eritropoietina, que aumenta a produção de glóbulos vermelhos no sangue) pode ter espantado os mais destemidos. De todo modo, aquela primeiro geração de testes de sangue só foi capaz de monitorar doping ocorrido até 72 horas antes da coleta do material.

Ao contraio do atletismo, a natação rendeu um maná de resultados. Quase desconcertantes. Quando Pieter van den Hoogenband estraçalhou o recorde mundial dos 100m livre, nadando abaixo da marca mítica dos 48 segundos, o Centro Aquático explodiu em festa apesar do herói festejado ser filho de terra estrangeira.

VDH, como passou a ser chamado por quem se confundia com o longo sobrenome ? isto é, todo mundo menos alguns europeus ? passou a herói da hora. Numa prova em que recordes são batidos em não mais do que centésimos de segundos, o holandês capou mais de três décimos da marca anterior de 48s18. Um assombro. De quebra, também abortou a meta do russo Alexander Popov de se tornar tricampeão olímpico na modalidade. Contrariando a norma de que todo medalhado deve comparecer a uma entrevista coletiva ostentando o troféu pendurado no pescoço, o russo enfrentou os holofotes com a medalha no bolso ? era apenas de prata, metal de peso indigno para as expectativas do Príncipe da Velocidade.

Assistir a provas olímpicas ao vivo num país apaixonado por esportes e fanático por natação foi, sem dúvida, uma experiência à parte. Nas provas de revezamento, por exemplo, as arquibancadas se punham de pé, cantavam rock e batiam palmas ritmadas com as braçadas dos nadadores. Sinfonia nova para mim.

O peixe grande vindo dos Países Baixos também estragou a coroação que a Austrália preparava para o calouro sensação da casa, Ian Thorpe, de 17 anos e pés tamanho 50. Esperava-se que Thorpe conquistasse quatro medalhas de ouro (2 individuais, 2 em revezamentos) a bordo de seu dramático traje negro inteiriço, que imitava pele de tubarão. VDH cortou-lhe o voo na prova individual dos 200m nado livre, com direito a quebra de recorde mundial, e também levou o ouro nos 50m, novamente com quebra de recorde. Coincidência ou não, sua compatriota Inge de Bruijn, com quem dividia o técnico, também fez terra arrasada na piscina olímpica de Sydney, quebrando três recordes mundiais em três provas individuais. ?Não respondo a perguntas sobre doping?, informava aos jornalistas que a aguardavam após cada vitória. A sala rapidamente se esvaziava à metade.

Houve quem atribuísse as boas marcas na natação ao fato de a piscina ser ?a mais rápida do mundo?, como a definiu o velocista americano Gary Hall, Jr. A água esterilizada e tratada com ozônio para ganhar em estabilidade tinha temperatura igual à do ambiente para que o corpo do atleta não perdesse energia ao entrar em contato com ela, novidade para a época.

Teve mais razão, porém, quem associou os formidáveis desempenhos à estreia dos maiôs que encobriam os nadadores do pescoço aos tornozelos, fazendo dos blocos de largada quase uma cena de ficção científica. Cabe registrar que Popov não esteve entre os que aderiram à novidade hoje proibida. ?Compito com minha própria pele?, dizia, altivo. E perdeu.

Meses antes do início dos Jogos, o americano Tom Malchow, dos 200m borboleta, fora o primeiro nadador da história a bater um recorde mundial meses antes enfiado numa dessas roupas fastskin. Defensor apaixonado da novidade, ele estava convencido de que por comprimir a musculatura, e portanto reduzir o acúmulo de ácido lático no corpo, além de diminuir brutalmente o atrito com a água, o revolucionário maiô era o grande diferencial.

Malchow ia além. Ele também dizia sentir-se como Clark Kent vestindo a roupa de Super-Homem, tamanha era a confiança que adquiria ao se enfiar na armadura.

Mas o maior lucro acabou indo para a Speedo, fabricante da roupa que prometia um ganho de 3% a 4% no desempenho na água. A marca subiu ao pódio 88 vezes só nos seis primeiros dias de provas e abiscoitou 81% do total de medalhas dali.

Desde 2010, e por pressão de nadadores de ponta encabeçados pelo maior de todos, Michael Phelps, os controvertidos maiôs de corpo inteiro à base de poliuretano estão proibidos pela Federação Internacional de Natação.

É possível, portanto, que alguns recordes alcançados com esses maiôs jamais consigam ser melhorados, da mesma forma que vários recordes antigos movidos a doping. E se nos Jogos de 2000 alguns resultados tiverem somado os dois fatores ? pele de tubarão + substâncias ilícitas?

O vírus do doping tem isso de insidioso: ele dissemina suspeitas sem comprovação, até matar o esporte. Ou vice-versa ? até o esporte domar o doping de medo. Matá-lo é impossível.

Numa edição dos Jogos que devolveu um sentido de jovialidade popular ao movimento olímpico e em que festas de rua pipocavam sem motivo, a Austrália se manteve à altura de sua reputação até o final. Na Cerimônia de Encerramento um rock sacolejante trovejou, e gloriosas Priscillas, Rainhas do Deserto fizeram festa no gramado. Tampouco faltou a característica nacional de fazer rir sobretudo dos próprios australianos, com a conhecida verve antiautoritária.

Temas sérios e essenciais à história da nação, como a marginalização da população aborígene, também conseguiram ser desengavetados durante os Jogos. E com grande pompa e circunstância, quando até a véspera ainda eram considerados tóxicos. A escolha da velocista aborígene Cathy Freeman para acender a pira olímpica foi um marco, e as repetidas menções à herança aborígene que constaram dos discursos oficiais não passaram despercebidas. A banda Midnight Oil se apresentou envergando camisetas e calças marcadas com a palavra ?Sorry? ? referência a um até então inexistente pedido de desculpas do governo australiano pelo tenebroso tratamento imposto a gerações e gerações de aborígenes.

Foi o início de uma sofrida reconciliação mediada, de certa forma, pelos Jogos. Oito anos depois viria o ansiado pedido de desculpas pelas leis de assimilação que, entre outros, retiravam crianças aborígenes de suas famílias para serem criadas por brancos. Uma dessas crianças foi Cathy Freeman. Quando ela cruzou a linha de chegada nos 400m rasos e conquistou a mais celebrada das 16 medalhas de ouro que deram à Austrália o quarto lugar no cômputo geral, o estádio olímpico veio abaixo.

Um total de quase 60 medalhas para uma nação de 19 milhões de habitantes é espetacular. Dava gosto de ver que, mesmo quando não havia nenhum atleta australiano no pódio, ninguém arredava pé das arquibancadas até o final das cerimônias de premiação. Quem realmente gosta de esportes sabe que todo minuto olímpico conta.

55766003_Anthony Ervin campeão olímpico em Sydney 2000 largou as piscinas aos 22 anos está de volta.jpgEscrevi na época que só poderia mesmo ter sido nos Jogos de Sydney, onde se celebrou como nunca a mulher atleta plena, orgulhosa de seus músculos e vaidosa de seu corpo, que surgiria um mulherão como Tatiana Grigorieva. No tablado de Ginástica do Super Dome, continuavam a atuar como sempre atletas em miniatura capazes de feitos extraordinários, como saltar no cavalo a uma velocidade de 25 km/hora. Eram as que devem portar franjas e topetes endurecidos de laquê, presilhas no cabelo, e maquiagem carregada demais para a aparência infantil. Eram as meninas que pareciam em descompasso com a atleta celebrada no ano 2000.

Essa estava em exposição total no Estádio Austrália, na prova de salto com vara feminino ? modalidade do atletismo até então vetada a mulheres. Cada vez que a silhueta esguia e bronzeada de Grigorieva se colocava em marcha para um novo salto, a arquibancada do estádio aplaudia a cadência das passadas, em delírio. E cada vez que os telões focavam o rosto de traços eslavos e olhos de azul-esverdeado, emoldurados por uma penca de cabelos loiros, a alegria era maior. Embora nascida em São Petersburgo, ela competia pela Austrália.

?Quero mostrar que uma mulher que compete no esporte pode ser uma mulher linda e que sabe se cuidar?, diria ela sem modéstia, depois de conquistar a medalha de prata. Provavelmente também concorda que merece as sete fotos a que teve direito no ensaio de nus olímpicos da ?Black&White”.

Da delegação brasileira que levou 205 atletas para os XXVII Jogos e de lá voltou com 6 pratas e 6 bronzes, nosso melhor embaixador foi Gustavo Kuerten. Nem poderia ser diferente. Guga e o espírito que reinou em Sydney foram feitos um para o outro. Apesar de milionário e de ter se tornado pouco antes da Olimpíada bicampeão do Torneio de Roland Garros, em Paris, o brasileiro optou por alojar-se na Vila dos Atletas, da qual as celebridades do esporte fogem como da peste. Eles costumam alugar mansões ou hospedar-se em hotéis para fugir do assédio e poder se concentrar. Guga, como é de seu feitio, distribuía autógrafos como se não houvesse competição pela frente. Encarou o bandejão e o alojamento comum. Não ganhou medalha. Conquistou simpatia.

De certa forma, os Jogos de 2000 foram uma espécie de último Baile da Ilha Fiscal. Só que desta vez o apagar das luzes não foi o da monarquia brasileira. Foi o do mundo que existiu antes do atentado terrorista de 11 de Setembro de 2001. Ninguém sabia, mas em Sydney dançou-se sobre um vulcão chamado Al-Qaeda. A partir da Olimpíada de Atenas de 2004, tudo seria diferente.