Cotidiano

Svetlana Alexievich: "A Humanidade não estava pronta"

PARATY – As fortes histórias presentes nos livros da bielorrussa Svetlana Alexievich foram trazidas para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) pela própria autora, no início da noite deste sábado, para uma Tenda dos Autores lotada. O impacto foi percebido pelo silêncio e certo desconforto do público ao ouvir a autora narrando algumas das histórias que ela coletou para seus trabalhos.

Curador da Flip, Paulo Werneck abriu a mesa fazendo uma homenagem a Boris Schnaiderman, reconhecidíssimo tradutor do russo para o português, que morreu em maio, aos 99 anos. Na sequência, coube ao jornalista Paulo Roberto Pires a tarefa de conduzir a conversa com a bielorrussa. Ele lembrou do caráter único de sua obra dentre os 114 vencedores do Nobel de Literatura. Laureada em 2015, Svetlana se tornou célebre por seus relatos de tragédias, narrados a partir das histórias de sobreviventes, testemunhas ou vítimas. No Brasil, dois de seus livros foram editados este ano: “Vozes de Tchernóbil” e “A guerra não tem rosto de mulher?” (ambas pela Companhia das Letras).

Ela explicou a origem de seu desejo por fazer a literatura que faz.

– Fui criada num aldeia na Bielorrússia em que só viviam mulheres, porque após a guerra não sobreviveram homens. Me lembro de ouvir nas ruas as conversas daquelas mulheres, elas contavam como haviam se despedido de seus maridos. Isso era muito forte e me marcou pelo resto da vida – disse.

Svetlana lembrou, então, que estudou e trabalhou como jornalista, mas diferencia sua escrita do que sai nos jornais, para ela fontes de “informações mais banais e superficiais”. Ela diz não fazer entrevistas. Seu método, explicou, é buscar ouvir verdadeiramente as pessoas.

Paulo Roberto Pires quis saber, então, como ela consegue a confiança de seus interlocutores para alcançar relatos tão íntimos como os que estão em seus livros.

– Eu sempre valorizo essa entonação de amizade que estou usando aqui. Não me importa ter recebido prêmios. Converso sobre a vida normalmente – afirmou.

O tema das tragédias ambientais foi introduzido na mesa com a lembrança de que Paraty fica próxima a uma usina nuclear, como a Tchernóbil que inspirou um dos livros mais célebres de Svetlana. A escritora contou que foi à usina pouco depois da tragédia, em 1986.

– Eu queria ver aquele tipo de desastre novo. Um taxista me contou que os pássaros perderam a orientação e batiam nas janelas dos carros. Eu descobri que as folhas das árvores foram queimadas pela explosão, e os restos foram enterrados fora da cidade – disse. – A Humanidade não estava pronta para o que aconteceu.

Desgastada pelo sofrimento de tanta violência e barbaridade que já encontrou, Svetlana afirmou que nunca mais vai escrever um livro sobre guerra. Seu novo projeto, já em andamento, será sobre a única cura possível para a vida, segundo a escritora: o amor.

– Nem fui para Chechênia porque acho que não aguentaria mais ver homens mortos por outros homens. Acho que eu já disse tudo que queria dizer sobre guerra – disse Svetlana, que lembrou a história de uma personagem que cuidou de seu marido, já quase em estado vegetativo, até o fim da vida – Se não abordasse o amor ali, acho que ninguém conseguiria ler um parágrafo do livro. Essas heroínas do meu livro amavam muito e tinham forças surreais, elas foram acima de todas expectativas que eu tinha de literatura antes.

Além do amor, a escritora também destacou o peculiar humor russo, baseado em muito sarcasmo, mesmo em momentos de crise. Esse humor, para ela, seria resultado de uma cultura bélica inerente ao povo.

— Para sobreviver, o russo tem que lutar — disse Svetlana.

Apesar de ter sofrido com a censura estatal, e ter morado fora de seu país por anos devido à perseguição política, a bielorrussa falou, porém, que em muitos momentos a relação com o poder é mais fácil que a relação com o povo. Ela citou o presidente russo, Vladimir Putin, e o presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko.

– Quando um Putin discursa, quando um Lukashenko, nosso ditador bielorrusso, discursa, muita gente ouve. Já quando nós falamos poucos ouvem — contou.