RIO ? É um desejo de qualquer escritor: esbarrar, nas esquinas ou na imaginação, com um personagem que pareça tão pronto que provoque de imediato a ideia de um romance.
Foi o que aconteceu há um par de anos com o premiado escritor pernambucano José Luiz Passos. Em 2014, seu editor brasileiro, Marcelo Ferroni, havia lhe encomendado um conto para uma coletânea temática sobre traição. José Luiz, que dá aulas de Literatura Brasileira na UCLA, nos Estados Unidos, estava mergulhado em pesquisas sobre a Revolta da Armada, rebelião de marinheiros contra o governo de Floriano Peixoto em 1893, e perguntou a Ferroni se podia escrever sobre traição política, focando na figura de Floriano. ?Pode?, respondeu o editor.
Quando Passos entregou o texto, o editor animou-se com as muitas possibilidades narrativas que brotavam de Floriano: o ?marechal de ferro? era um sujeito de silêncios desconcertantes, casado com a meia-irmã, obcecado por Napoleão Bonaparte, que lia muito, desenhava bem (nas suas cadernetas, ensaiava diferentes tipos de vagina), e ao mesmo tempo era capaz de comandar matanças desumanas, como na campanha do Paraguai. Ferroni sugeriu que o autor investisse mais tempo naquele personagem tão cheio de minúcias e contradições, quem sabe para um romance. Foi a vez de ele querer saber se o autor topava a proposta.
Assim surgiu ?O marechal de costas?, romance histórico que Passos acaba de lançar pela Alfaguara, em que o protagonista da trama, Floriano Peixoto, tem sua biografia contada ora por eventos do passado, ora do presente. Que é narrado mais especificamente em 2013, quando uma cozinheira, depois de preparar um jantar na casa de um advogado, entra em uma longa conversa com um dos convidados, um professor falastrão. No diálogo, ele ouve a história da vida dela (a trama apresenta indícios de que ela é aparentada do marechal Floriano Peixoto) enquanto fala sobre a política atual. E é assim que a personagem ? criada em homenagem à mãe do autor, cozinheira de mão cheia e hoje dona de um bufê em Pernambuco ? percebe os desdobramentos das manifestações que tomaram o país naquele ano.
?A gênese do passado está no presente, não o contrário?, costumava dizer Napoleão Bonaparte, citado o tempo todo por Floriano na trama. A frase é uma das chaves de leitura do romance, como explica o autor, ao falar das coincidências que o leitor vai notando entre o que acontece nos tempos sobrepostos:
? É um romance histórico que conta episódios do passado que têm ecos na situação presente, como a fragilidade do sistema legislativo brasileiro, a crise cambial, o vice que assume a presidência, rompendo com o quadro com o qual ele se elege ? diz o autor, por telefone, de Los Angeles, onde vive com a mulher e os dois filhos. ? Floriano cai de paraquedas na presidência e se vê isolado, acuado, sem que haja novas eleições, um dos motivos que levam à Revolta da Armada. Acho que esses paralelos começam a se impor no romance. E sob a ótica da cozinheira, uma personagem que marca essa relação cultural muito brasileira, e muito marginalizada, que é a do trabalho doméstico, de quem fica na cozinha observando tudo o que acontece. Acho que a grande pergunta é: o que você faz quando não pode mudar as circunstâncias que se impõem na sua vida?
Livro foi escrito na quimioterapia
É uma pergunta que o próprio autor se fez diversas vezes ao longo da escrita. Quando estava no meio do trabalho, entre os 80 livros que leu para compor o romance, uma notícia quase o fez desistir: aos 44 anos, Passos descobriu um câncer no intestino, que só revelou com detalhes num post publicado no blog da Companhia das Letras, no início desta semana.
? Várias vezes eu desisti do romance. Fiz uma cirurgia, depois toda a quimioterapia, e era muito difícil prosseguir. Você perde muito peso, até hoje não consigo escrever à mão ? detalha o autor, que encerrou a fase quimioterápica há poucos meses e se recupera bem. ? Mas desistir também não era fácil. Aquele personagem era fascinante e surgiu de bandeja para mim: um vice controverso, que assume a presidência depois da renúncia de Deodoro da Fonseca, e se vê isolado. Uma figura histórica que consolida a República de maneira quase silenciosa, e que podia ter a biografia iluminada por acontecimentos do presente.
A pesquisa e a escrita serviram como uma catarse, conta Passos. E a doença acabou por fazê-lo dar uma importância maior à fragilidade física na construção dos personagens:
? Há muita relação entre os personagens, tanto Floriano quanto Pedro II, Napoleão e até a mãe da cozinheira, e a decadência dos seus corpos. Desenvolvi uma verdadeira fixação por partes do corpo no romance, e até a fascinação de Floriano por tipos de vagina, ainda que tenha um fundo histórico real, foi reiterada por isso.
A fixação deu trabalho ao editor: na versão original, o romance tinha como cena de abertura a descrição de uma longa prisão de ventre de Floriano, que também era conhecido como ?marechal de ferro?. O próprio autor admite, às risadas, que era uma cena excessiva.
? Mas trabalho mesmo foi quando o romance já estava fechado, entregue, e, dias depois, eu vi a defesa da Dilma (Rousseff) no Congresso, durante o processo de impeachment. Há 20 anos acompanho os acontecimentos do Brasil de longe como se estivesse perto. Entendi que o discurso de defesa devia atualizar o romance, e liguei correndo para o Marcelo Ferroni para incluí-lo. Tive poucas horas para fazer a nova versão ? conta Passos, que tinha pressa: queria porque queria lançar o romance ainda neste ano, ?para que 2016 não ficasse marcado só como o ano do câncer?. ? Se as pessoas se divertirem com a figura do Floriano, se pensarem nos pontos de vista da cozinheira, meu papel foi feito. Não é um romance panfletário. Este não tem sido um ano fácil para ninguém. E neste romance é a minha melhor resposta a ele.