RIO ? Os dois principais polos de criação e difusão cultural do Sudeste, as capitais do Rio e de São Paulo, vivem um momento de crise, um “apagão cultural” ? ou “retaliação à Cultura”, dizem alguns ? que afeta a vida de artistas, realizadores culturais e, também, do público dessas cidades. A transição de governos municipais nas duas capitais gerou uma espécie de “sumiço” das verbas destinadas para o setor. No Rio, o ex-prefeito Eduardo Paes e a secretaria municipal de Cultura (SMC), liderada até dezembro por Júnior Perim, não honraram o compromisso de pagar R$ 25 milhões em prêmios que haviam sido garantidos publicamente para o Programa de Fomento às Artes. Já em São Paulo, o secretário de Cultura André Sturm e o prefeito João Dória assumiram o município e congelaram imediatamente 43,5% do orçamento previsto para a Secretaria de Cultura. A situação de ambas as cidades acalorou debates e assembleias públicas realizadas nos últimos dias que cobram das secretarias o compromisso em pagar débitos e garantir investimentos em 2017. Nesta terça-feira à noite, realizadores culturais, artistas e produtores independentes e de movimentos como o Reage Artista se reunirão na Lapa, no Espaço Moitará, às 19h, com o objetivo de consolidar estratégias que possam convencer a nova secretária municipal de Cultura, Nilcemar Nogueira, e o prefeito Marcelo Crivella, a executarem o pagamento integral dos R$ 25 milhões previstos pelo edital de 2016.
Ao assumir a pasta, em janeiro, a Nilcemar tinha o pagamento da dívida, herdada da gestão anterior, como seu primeiro e maior desafio. Em um primeiro encontro público com o setor, realizado no Teatro Carlos Gomes, em janeiro, ambos foram cobrados sobre o edital, porém em entrevista concedida ao GLOBO, publicada ontem, a secretária afirmou não ter como garantir quando os R$ 25 milhões do edital de Fomento de 2016 serão pagos. Na entrevista, Nilcemar declarou, também, que teria “R$ 15 milhões aprovados para o fomento em 2017”, e que planejava usar esse montante em um novo edital relativo a 2017, em vez de usá-lo como parte de uma estratégia para quitar o edital anterior. Tal intenção não foi bem recebida pelo setor, que planeja agora realizar uma assembleia pública com a presença da secertária e do prefeito a fim de cobrar o pagamento dos R$ 25 milhões antes de qualquer outra medida.
? A primeira coisa a se fazer é pagar o edital de 2016. Segundo, que seja pago com os R$ 25 milhões previstos, sem cortes. Só depois se lutaria para lançar um novo edital ? diz a diretora e pesquisadora Adriana Schneider, que integra o Reage Artista. ? Desde o ano passado estamos reivindicando o pagamento dos projetos contemplados em 2016, um compromisso que não foi honrado pela gestão anterior, num total desrespeito aos trabalhadores de cultura da cidade. O não pagamento significa uma derrota grave.
Na entrevista, Nilcemar disse que o “valor será pago, mas não tenho como dizer quando”. Ainda assim, anunciou que não vai “deixar de colocar um novo edital na rua, porque estaria impedindo novos projetos de serem realizados. Já compartilhei com os produtores o problema”. Mas parte do setor não se mostrou satisfeito com a intenção:
? Os R$ 25 milhões já não atendem nem 10% da demanda carioca ? diz a atriz e produtora independente Natasha Corbelino. ? Neste último edital, foram 2.480 projetos inscritos e apenas 204 foram aprovados. Então R$ 15 milhões para um novo edital? Não. O de 2016 precisa ser pago. Não pode haver retrocesso.
Corbelino realiza, desde dezembro passado, um levantamento numérico que busca identificar o impacto econômico gerado pelo não pagamento do edital de 2016.
? Com os 204 projetos pagos teríamos 6.300 contratos previstos, sendo 4.800 contratos diretos com trabalhadores da cultura, como artistas, técnicos, produtores, e 1.500 contratos de serviço, além dos números indiretos que geramos ? diz. ? Somos muitos e geramos renda. Movimentamos comércio, prestadores de serviço e mobilizamos o público e os bairros de toda a cidade.
Entre as propostas a serem discutidas hoje no encontro da Lapa está a criação e a implementação de uma Lei de Fomento ao Trabalho Continuado do Artista, que busca, entre seus objetivos, garantir o orçamento em lei. A garantia legal visa evitar que futuras gestões lancem editais que contenham cláusulas como o item 2.5 do edital de 2016: “A liberação do valor destinado a este Processo Seletivo está condicionada à disponibilidade orçamentária e financeira”. Ao fim de 2016, a gestão Paes anunciou que a receita do município havia sido menor que a expectativa, e que, por tal motivo, não teria verbas para contratar os R$ 25 milhões. O setor diz que tal cláusula ? presente em editais anteriores da SMC ? abre brecha para manobras orçamentárias e não garantem, de modo definitivo, o pagamento dos prêmios anunciados. Assim, apesar de a nova secretária afirmar ter “R$ 15 milhões aprovados”, não esclareceu se tal aporte depende, também, do resultado da receita municipal para ser liberado.
? Ficamos reféns desse tipo de cláusula, que diz que o valor do edital pode ser cortado dependendo da receita, por isso é importante uma lei ? diz Adriana. ? A cultura está sofrendo um ataque por todos os lados, em todas as instâncias. O não pagamento (do edital 2016) significa um descrédito, um indicativo de que estamos reféns das vontades dos gestores da ocasião e que ainda não temos políticas púbicas consistentes e duradouras asseguradas para a cultura na cidade.
Em São Paulo, o congelamento de 43,5% do orçamento municipal para a Cultura coloca em risco projetos importantes da secretaria municipal, como o Programa Vocacional, o Escola Municipal de Iniciação Artística, além dos programas de fomento à dança, ao teatro, ao circo, à periferia, entre outros. Contra a medida foi criada a Frente Única Descongela Cultura Já, que cobra o “descongelamento total” do orçamento. No último dia 7, o Movimento dos Teatros Independentes de São Paulo (Motin), a Cooperativa Paulista de Teatro e representantes de diferentes linguagens artísticas e de segmentos da cultura pressionaram o atual secretário numa assembleia pública realizada no Centro Cultural São Paulo. Ao fim do encontro, Sturm assinou um documento proposto pelos artistas em que assume o compromisso de buscar o descongelamento integral dos recursos contingenciados pelo prefeito, João Doria.
? Teremos um descongelamento pequeno nessa semana, mas já disse isso para o secretário de Fazenda que o que eles vão liberar não me satisfaz ? disse Sturm, no encontro. ? Sou um militante da cultura, não vou ser secretário de cultura para desmontar nada. Não serei eu o coveiro de qualquer tipo de programa. Se tivermos “x”, vamos usar o “x”, mas vamos continuar brigando pelo “y”, e para isso precisamos dialogar. Vocês têm meu apoio, meu e da minha equipe para essa luta que vai ser dura, vai ser difícil. Temos que lutar para que nosso congelamento seja o menor, e se possível, zero. Essa é a luta, esse é nosso objetivo e a gente tem que trabalhar para conseguir.
Presidente da Cooperativa Paulista de Teatro e integrante da diretoria do Motin SP, Rudifran Pompeu diz que o setor “luta para que se cumpram os combinados discutidos amplamente no parlamento”.
? Quando a gente se depara com um congelamento de 43,5 % de um orçamento aprovado pelo Legislativo e que foi amplamente discutido com a sociedade, é sinal de quebra de qualquer diálogo com o setor ? diz Rudifran Pompeu, presidente da Cooperativa Paulista de Teatro e integrante da diretoria do Motin SP. ? Nenhum gestor será capaz de contra argumentar com lucidez, e jamais conseguirá justificar tamanha afronta à área cultural. Nesse momento, estamos em assembleia e mobilização permanente e pressionaremos em todas as instâncias para que o orçamento seja integralmente descongelado e executado.