RECIFE – Há cerca de dez anos, praticamente não havia técnicos locais para as produções audiovisuais do Recife, que já chamavam a atenção. Nascido na capital pernambucana, Kleber Mendonça Filho, diretor de ?O som ao redor? (2012) e ?Aquarius? (2016), lembra que naquela época os profissionais eram quase todos importados do Sudeste.
? A parte técnica ficava na mão de pessoas que já vinham testadas pelo sistema, do Rio e de São Paulo, simplesmente porque nós não tínhamos esses profissionais no Recife.
O cenário, hoje, é outro. O efervescente cinema de Pernambuco, com fortes ligações com Olinda e Recife e, ao mesmo tempo, de temáticas universais, provocou dois fenômenos. Primeiro, cineastas pernambucanos que porventura foram se aventurar em outras partes do país voltaram a rodar (e a viver) em seu estado natal ? muito por conta das leis de incentivo que funcionaram e deram vazão à produção local. Agora, esse processo de importação se inverteu. Com curso de cinema implantado ainda nos anos 2000 e uma produção que não para de aumentar, o estado virou celeiro de novos talentos em áreas como direção de arte, fotografia, preparação de elenco e figurino. E os técnicos começam a ser exportados, abastecendo o eixo Rio-SP.
Acho improvável que saia do Recife uma dessas comédias sobre mulheres desesperadas para casarA paulistana Anna Muylaert, por exemplo, escalou o diretor de arte Thales Junqueira para o premiado ?Que horas ela volta??, filme mais comentado do cinema nacional em 2015. Foi a primeira experiência dele fora do estado. Mas Junqueira levava na bagagem trabalhos em produções como ?Tatuagem? (2013), de Hilton Lacerda, e o já citado ?O som ao redor?. A parceria deu certo. Junqueira e Anna fizeram ?Mãe só há uma? (2016) na sequência. É dele também, com Juliano Dornelles, a direção de arte de ?Aquarius?.
Para Junqueira, a complexidade do que se produz no estado vai além de questões geográficas:
? Não existe um movimento no cinema pernambucano, mas diversos. Para além do fato de serem realizados em Pernambuco ou por pernambucanos, são filmes muito pessoais. Bons ou ruins, mas que não se submetem a uma lógica comercial que gera produtos iguais. Acho improvável que saia do Recife uma dessas comédias sobre mulheres desesperadas para casar. O cinema daqui desperta a atenção de todo o mundo. Nesse sentido, me parece natural que realizadores do Sudeste e de outras partes do país desejem trabalhar também com técnicos que atuem nesses filmes.
? Não é uma questão de ser melhor, mas apenas de ser diferente ? opina Kleber. ? Muitos técnicos dessa indústria vêm de grandes produções, o que faz com que tenham uma relação mais pragmática e seca com o trabalho. Os pernambucanos têm outro tipo de relação, por virem de projetos com perfis menos comerciais.
Para a figurinista pernambucana Joana Gatis, os baixos orçamentos fazem com que a criatividade floresça:
? Agora a estrutura está bem melhor, mas ainda não tem o tamanho de Rio e São Paulo. A gente ainda precisa criar, adaptar-se a recursos mínimos.
Depois de um período em São Paulo, Joana voltou a apostar no Recife. E tem começado a se arriscar em projetos autorais. A invasão dos pernambucanos na indústria do Sudeste, diz ela, já provocou questionamentos:
? Uma vez fui fazer um filme em São Paulo, e uma pessoa da equipe perguntou por que estavam trazendo uma figurinista do Recife sendo que lá estavam as melhores.
Para Anna Muylaert, existe algo enraizado na cultura pernambucana que instiga outros olhares:
? Pernambuco tem uma tradição de intelectualidade há séculos, e essa tradição está hoje refletida não apenas na força crítica e artística da maioria dos filmes que vem de lá como também na formação dos técnicos, que desde muito cedo parecem já saber que o cinema não pode ser visto isoladamente da vida.
O que vem acontecendo nos últimos anos nem de longe lembra o longo período em que a produção audiovisual do estado se manteve invisível. Foi só com ?Baile perfumado?, filme de Lírio Ferreira lançado em 1997, que o jogo começou a virar. Desde então, o cinema pernambucano ganhou o mundo com outros nomes, como Cláudio Assis, Gabriel Mascaro, Hilton Lacerda, Marcelo Gomes e o próprio Kleber.
O IMPACTO DE 2016
Mas até 2016 nenhum ano havia tido tamanho impacto para o audiovisual da região. Os dois longas nacionais mais elogiados do ano passado, premiados mundo afora, vêm de lá: ?Aquarius? causou estardalhaço internacional pela volta apoteótica de Sonia Braga, o ato político em Cannes contra o impeachment de Dilma Rousseff e, por fim, a polêmica em torno do candidato brasileiro a uma indicação ao Oscar de filme estrangeiro (o longa de Kleber era tido como favorito, mas o escolhido foi ?Pequeno segredo?, de David Schurmann, que acabou deixado de lado pela Academia). O cinema pernambucano já retratou tanto Recife e Olinda que é possível fazer um tour só pelas locações dos filmes. O prédio azul de Clara, em ?Aquarius?, por exemplo, virou ponto turístico. Localizado na praia do Pina, é fotografado diariamente por moradores e turistas.
Outro longa de assinatura pernambucana que fez barulho foi ?Boi Neon?, de Gabriel Mascaro, também citado, como o filme de Kleber, entre os dez melhores filmes do ano pelo ?New York Times?. Foi a primeira vez na História que dois longas brasileiros figuraram na lista. E 2017 já começou com o novo filme de Marcelo Gomes (?Joaquim?, inspirado na vida de Tiradentes) selecionado na disputa pelo Urso de Ouro, prêmio principal do Festival de Berlim, encerrado no domingo passado. O curta pernambucano ?Está vendo coisas?, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, também foi exibido por lá.
Ver o mundo distanciado dos grandes centros é uma qualidade apontada por Renata Pinheiro, diretora de arte de longas como ?Hotel Atlântico? (2009), de Suzana Amaral, ?Zama? (2017), de Lucrecia Martel, e ?Deserto?, de Guilherme Weber (2016). Este último rendeu a Renata prêmios nos festivais de Aruanda e de Brasília. Ela, que também já investe na direção (?Amor, plástico e barulho?, de 2013, e ?Açúcar?, em finalização), aponta os anos 1990 como ?cruciais? para essa nova produção artística:
? Recife chegou a ser apontada como a terceira pior cidade do mundo, e parece que isso despertou uma vontade em nós de ser a periferia artística no mundo. O manguebeat foi uma mobilização artística de contestação social, e as fronteiras entre as expressões artísticas se diluíram a partir de então.
Diretor de fotografia de ?Aquarius? e ?O som ao redor?, Pedro Sotero virou parceiro do cineasta carioca Fellipe Gamarano Barbosa, para quem já fotografou ?Laura? (2011), ?Casa Grande? (2014) e ?Gabriel e a montanha? (a ser lançado). E credita o sucesso dos pernambucanos aos realizadores, ?que não têm o rabo preso e estão produzindo filmes pessoais, politicamente conscientes e afiados, sem os compromissos com os padrões estéticos e comerciais?:
? Isso confere aos filmes identidade artística, estranheza e força cinematográfica. Acho que essa forma mais livre e pessoal de fazer filmes chamou a atenção de diretores e produtores de outros lugares do país e do mundo ? avalia Sotero.