Cotidiano

Luiselli e Cuenca ganham público da Flip com carisma e crítica política

PARATY — Os novos livros de Valeria Luiselli e João Paulo Cuenca foram o tema da mesa “A história de minha morte”, a segunda desta sexta-feira, na Tenda dos Autores da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Mediado pelo tradutor Ángel Gurría-Quintana, o papo foi antecedido por um convite do curador Paulo Werneck, que chamou o público para participar do “Ocupa Flip” (programado para este sábado, às 14h), movimento de moradores da cidade que visa chamar a atenção dos turistas para discutir os problemas enfrentados na região, como violência e preservação das culturas e dos povos indígenas. Links Flip Serviço

Anunciados por Quintana como dois dos principais nomes da literatura latino-americana contemporânea, a escritora mexicana e o autor carioca conquistaram o público com carisma, bom humor e críticas políticas. Antes de começar a falar sobre seu novo romance, “A história dos meus dentes” (Companhia das Letras), Valeria agradeceu pelo convite: “É uma felicidade ver tanta gente reunida em torno das letras. Obrigada.” Ela prosseguiu explicando a origem da obra, feita por encomenda.

— Uma importante galeria de arte do México me convidou para escrever textos sobre uma exposição, a montagem da coleção deles. Isso me pareceu muito chato, mas achei intrigante o fato da galeria ser financiada por uma fábrica de sucos. Então decidi falar sobre aqueles operários. Eu escrevia fragmentos que eram distribuídos na fábrica, e os funcionários organizaram um grupo de leitura. Eles comentavam o texto, criticavam bastante tudo e também contavam suas histórias. O livro se formou com base nesse intercâmbio com os trabalhadores — disse.

Já Cuenca contou a pitoresca história que culminou em seu novo livro, que parte da suposta morte do próprio escritor.

— Em julho de 2008, um cadáver foi identificado pela polícia com a minha certidão de nascimento. Ele usou minha identidade para morrer justamente num momento de maior perda de identidade do Rio —- contou Cuenca, que enumerou os prós e os contras dessa investigação peculiar. — Um círculo de psicoterapeutas disse que era perigoso eu me aproximar tanto da morte. Mas aproveitei essa distância para ser sincero e falar da cidade de hoje, na qual nosso “Pereira Passinhos”, Eduardo Paes, quer fazer do porto uma Nova York. Desde os tempos de Pereira Passos, que quis fazer uma pequena Paris no Centro do Rio, a especulação imobiliária continua matando — afirmou o autor, bastante aplaudido pelo público.

Ele prosseguiu relembrando uma passagem do romance, sobre uma situação vivida por ele durante uma festa no Leme.

— Em certo ponto da noite, começou um tiroteiro. Havia uma guerra de facções num morro ali perto. Aí a dona do apartamento aumentou o volume do som e estourou uma garrafa de champanhe e disse: “Agora estamos presos aqui, vamos seguir a festa.” Na bolha em que vivemos, não sentimos tanto a democracia seletiva. Quem mora nas favelas, sob a mira de fuzis, segue numa ditadura — analisou.

A proximidade da dura realidade dos países latinoamericanos instigou Valeria a pedir a palavra.

— Brasil e México são dois Gullivers guiados por seus liliputianos. Chega a ser cômico. A especulação imobiliária contribuiu muito para o desgaste das relações sociais nos dois países — disse a mexicana, que mora em Nova York e contribui para publicações como o “The New York Times”.

RICHARD GERE

Ao relatar uma experiência sobre um certificado de residência fiscal necessário para estrangeiros poderem receber pagamentos, Valeria comentou um achado documental tão absurdo quanto o de Cuenca.

— Eles enviaram para minha casa os papéis de um tal Richard Gere. Acho que ele deve pagar mais impostos que eu, não? Talvez eu escreva sobre isso um dia — brincou sobre os papéis trocados do homônimo do ator de “Uma linda mulher”.

Depois da exibição de um trecho do longa “A morte de J.P. Cuenca”, no qual o escritor e diretor do filme aparece ao lado do autor e jornalista Paulo Roberto Pires, Quintana questionou-o sobre o limite entre realidade e ficção.

— Desde o “Dom Quixote”, o romance moderno trata da confusão do que é real e irreal — respondeu Cuenca. — Era necessário que eu usasse a primeira pessoa e meu nome. Era um beco sem saída. Se isso incomodar o público, acho ótimo. O filme complementa o livro. Foi gravado com um processo de pequenas insanidades, como nessa cena, na qual devo ter bebido uns oito dry martinis.

Nas palavras de Valeria, quando se escreve, “você mesma não tem certeza de onde começa a fantasia e a realidade”.

— Na América Latina, para o bem e para o mal, não nos preocupamos muito com esse limite. Nos EUA, é o oposto. Eles checam todas as informações que você escreve num livro — contou a escritora, para a réplica do mediador: “Posso imaginar um editor americano perguntando ao García Márquez: 'Essa cidade de Macondo existe mesmo?'”.

Ao final, a mesa recebeu perguntas do público. Numa delas, um membro da plateia perguntou o que os escritores fariam se pudessem mudar seus países.

— Eu tiraria todos que estão no poder agora. Isso deve ser nossa prioridade — respondeu Cuenca, que recebeu apoio de Valeria: “Quando isso acontecer, me avisa. Assim poderemos fazer o mesmo no México.