Cotidiano

Leia um trecho de 'Meu menino vadio', livro sobre autismo e paternidade

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RIO ? O jornalista Luiz Fernando Vianna conta, no livro “Meu menino vadio ? Histórias de um garoto link vianna autista e seu pai estranho” (Intrínseca), as agrugas de criar um filho com autismo. No pequeno trecho reproduzido abaixo, ele fala sobre como o clichê da superação de deficiências é muitas vezes usado para amenizar as dificuldades e angústias que envolvem a criação de um filho que tem algum déficit. O livro chega esta semana às livrarias e terá noite de lançamento em 2 de fevereiro na Livraria da Travessa de Ipanema.

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No monumental livro Longe da árvore, o escritor norte-americano Andrew Solomon conta, entre outras histórias, a de Nancy Corgi, mãe de dois autistas. Ela afi rma que, se soubesse o que passou a saber, não teria gerado os fi lhos, embora os ame profundamente. Na sua opinião, mente quem diz o contrário.

Não é necessariamente mentira, mas há componentes culturais e até patológicos na defesa de que é delicioso cuidar de pessoas com comprometimentos severos. Sofrer, renunciar, dar-se em sacrifício são sentimentos tratados como positivos numa sociedade de formação cristã, sobretudo católica. Temos débito com o martírio. No século XXI, acho que a maioria de nós já desconfi a de que não há paraíso coisa nenhuma. Então as prestações de contas se dão aqui na Terra mesmo, com gente salivando ? tanto de prazer quanto de desespero ? ao contar que perdeu a própria vida para cuidar de outra.

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O cardápio de demandas inclui terapias, escolas, médicos, atividades físicas, residências adequadas etc. Quem tem dinheiro sufi ciente e muita sorte ? pois o dinheiro nem sempre compra competência, muito menos afeto ? pode montar uma estrutura que dê conta dessas exigências sem precisar recorrer a leis ou ao Estado. Mas a enorme maioria dos pais e responsáveis não pode.

O discurso da bênção costuma descambar para o da superação, esse conceito que a imprensa, sobretudo televisiva, transformou em um pegajoso clichê. Exaltam-se as vitórias individuais, aquelas que ocorrem contra tudo e todos, como se bastasse força de vontade para conquistar qualquer coisa.

Fica parecendo que cuidar de um filho com autismo é um sacrifício que fazemos. Qual seria a alternativa? Entregá-lo a um orfanato após receber o diagnóstico? Sou pai da mesma forma que milhões de outras pessoas são. Nem mais nem menos. Nunca fui santo em nenhum aspecto da vida. Não posso ser canonizado apenas porque calhou de eu produzir um menino que tem alguns problemas.

Gerar um fi lho com defi ciência é jogar na loteria genética e perder. Os céus não têm nada a ver com isso. Não estamos sendo castigados. Tampouco ungidos.

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Se eu queria ter um fi lho autista? Não. Deixaria de ter se a ciência permitisse saber do diagnóstico ainda na gestação? Sim. O que a convivência com ele me proporciona mais: prazer ou angústia? Angústia. Ainda assim, amo meu fi lho? Mais do que qualquer palavra pode traduzir.

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Luiz Fernando Vianna é ex-repórter do Segundo Caderno do GLOBO e hoje coordena a Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles. Ele é autor de cinco livros sobre musica popular, entre eles “Aldir Blanc: resposta ao tempo” (Casa da Palavra).