RIO ? Em linha sucessória, pode-se dizer que após August Strindberg (1849-1912) e Ingmar Bergman (1918-2007) é o dramaturgo Lars Norén aquele que detém a obra mais reconhecida dentro do panorama teatral sueco. A diferença é que Norén está vivo, em plena atividade. Aos 72 anos, ele segue escrevendo peças, livros e poemas, sempre em busca de ampliar o que se pode fazer em termos de dramaturgia: ?A minha nova peça, por exemplo, não tem nenhuma palavra?, diz o autor. Pouco conhecido no Brasil ? muito menos do que deveria ?, Norén foi apresentado ao público brasileiro em 2006 com ?Outono e inverno?, do Grupo Tapa. Agora, uma década adiante, Bruce Gomlevsky encena um dos mais importantes textos do autor, ?Demônios?, no Sesc Copacabana. Escrita por Norén em 1983, a obra leva à cena dois casais, Frank (Bruce Gomlevsky) e Katarina (Luiza Maldonado) e Jenna (Thalita Godoi) e Thomas (Gustavo Damasceno), que se enredam numa noite de provocações e embates, onde são revelados ?os demônios adormecidos de cada um de nós?, diz Bruce. Às vésperas de lançar um novo livro de filosofia, ?Diários?, em que repassa seus estudos sobre Martin Heidegger, Norén falou ao GLOBO por telefone, de Estocolmo, na Suécia.
?Demônios? apresenta casais cujas relações se entortam em jogos que levam a confissões, extravaso de pulsões sexuais… O que buscava ao escrevê-la?
?Demônios? é a primeira parte de uma trilogia que apresenta diferentes etapas desses relacionamentos, do começo ao fim deles. A questão com esses personagens é que eles criam um ao outro como uma espécie de fantasia, não se veem como pessoas de verdade. Apaixonam-se pela fantasia, vivem com ela e, claro, não se pode mantê-la por muito tempo se você tem uma pessoa real na sua vida, no mesmo apartamento… Além da relação entre eles, a mãe de um dos personagens acabou de morrer, e o primeiro grande amor de todos nós é em relação aos pais, pela mãe, então ele tenta criar uma outra persona para ela, como uma boa mãe, mas ela não era… Era uma mulher pouco amorosa, muito fria… Então o que está em jogo é que eles criam versões de certas pessoas que têm grande impacto nas suas vidas. Seja uma mãe, um pai, amigos de infância… Pessoas que causaram alguma ferida, que deixaram pegadas de dor… Vejo esses personagens como uma espécie de trem em que os vagões estão desordenados. Onde deveria existir amor há dor, onde deveria haver dor há outra coisa…
E como você observa essa peça aos olhos de hoje? Ela segue em diálogo com o contemporâneo?
Eu nunca mais vi ou li a peça, mas é um texto muito importante no meu trabalho. Posso dizer que os personagens que escrevi nos anos 1990 e 2000 são como se fossem filhos desses personagens. E eles estão tentando seguir outro caminho, viver de outro jeito, evitando repetir os erros de seus pais… Eu escrevi bastante sobre o funcionamento das sociedades nessa época, muitas peças, mas que são bem diferentes do que estou fazendo agora.
E qual é o seu próximo projeto? O que você tem investigado no teatro?
Estou criando uma nova peça que será composta por 150 microcenas, todas realizadas em completo silêncio, sem nenhuma palavra, durante cerca de três horas. Chama-se ?Silent life?.
E o que busca com ela?
A essência da existência, da vida… Estou velho, e às vezes me pergunto do que vou me lembrar quando estiver perto da morte, do instante final. Acho que não vou me lembrar das histórias grandiosas, mas sim de diversos pequenos momentos… O modo como certa mulher caminhava, esse tipo de coisa… Então comecei a criar a partir desse sentimento de proximidade com a morte, embora, claro, todos nós estejamos próximos da morte. Escrevo essa peça a partir dessa busca pelo que é essencial. Essa pergunta: ?O que é, de fato, importante para nós??
O que te atrai e te assusta na morte?
Não tenho medo da morte. Mas tenho uma filha pequena, de 7 anos, e fico triste em pensar que ela não vai viver muito tempo comigo… E eu vou morrer sem ver o que vai ser dela… Tenho outra filha, de 45 anos… Ela vai sofrer quando eu partir, mas a perda não será tão grande quanto para a mais nova… Penso nisso. Sinto por elas. Mas em relação a mim, acho que já terminei meu trabalho. Está feito. Escrevo desde os 14 anos, é um longo tempo…
Mas a peça silenciosa surgiu só agora… O risco de fazer algo que nunca fez antes é o que o anima a seguir?
Sim, eu preciso do risco.
E o teatro sueco de hoje, tem se arriscado? Como os artistas têm respondido às questões europeias, como a crise migratória, a intolerância? O que o teatro pode nos dias de hoje?
Acho que os artistas não podem muita coisa, infelizmente. O problema começou lá atrás, nos anos 1920 e 30, quando começaram a atuar dentro de um mercado, absorveram a visão do mercado e se tornaram parte dele… Hoje, estão todos trabalhando para o mercado, atuando como se vendendo a si próprios. Precisamos quebrar isso. Mas, infelizmente, não há muita esperança. A única esperança é criar uma argila capaz de gerar algo no espectador… O futuro está no espectador. Sinto que os artistas têm buscado certos truques, atalhos errados, então acho que precisamos começar tudo de novo, do começo. É o que fez a tragédia, na época dos gregos. A sociedade no tempo de Ésquilo e Sófocles estava caindo ao chão, por terra. É como o nosso tempo. E é esse o grande impacto que o teatro ainda pode provocar: dar a alguém a possibilidade de se identificar com coisas que você pensa que não existem dentro de você, mas que existem. E é aí que você pode começar a trabalhar melhor com você mesmo.
Serviço ? ?Demônios?
Onde: Sesc Copacabana ? Rua Domingos Ferreira, 160 (38166200).
Quando: De qui. a sáb às 21h; dom. às 20h. Até 18/9.
Quanto: R$ 20.
Classificação: 16 anos.