BERLIM – João Moreira Salles tinha 6 anos quando sua família se viu obrigada a fugir
de Paris, assustada com as convulsões de Maio de 68, movimento que uniu
estudantes e operários em greve. Os Moreira Salles moravam na capital francesa
desde 1964. Ministro da Fazenda durante a curta gestão do presidente João
Goulart, o empresário e diplomata Walther Moreira Salles, pai de João, deixou o
Brasil logo após o golpe militar. O hoje premiado documentarista era muito
pequeno para se lembrar de detalhes daqueles dias tumultuados na capital
francesa. Mas a intensidade e a fugacidade daquele período revolucionário, um
dos mais importantes do século XX, são resgatadas e analisadas pelo diretor em
?No intenso agora?, que fez sua estreia mundial no último fim de semana, diante
de uma plateia embevecida, na mostra Panorama do 67º Festival de Berlim.
Como em ?Santiago? (2007), seu trabalho anterior, sobre a relação dos Moreira
Salles com o mordomo da família, ?No intenso agora? é fundamentado em elementos
autibiográficos. Construído com a ajuda dos montadores Eduardo Escorel e Laís
Lifschitz, a partir de imagens de arquivo e registros amadores dos eventos de
1968 na França e na antiga Tchecoslováquia, o projeto foi inspirado pelas
imagens caseiras que Eliza Gonçalves (1929-1988), mãe do cineasta, fez durante
uma visita à China em 1966, fase inicial e mais aguda da Revolução Cultural
Proletária. O novo filme, que tem narração em primeira pessoa do diretor, traz
de volta a euforia inicial da revolta estudantil, cujo espírito se alastrou pelo
mundo, e também seu esgotamento, frustrando alguns de seus jovens líderes ao
ponto de optarem pelo suicídio. Esta é a única relação direta com o destino da
mãe do cineasta, que tirou a própria vida, tragédia nunca mencionada no filme,
que terá pré-estreia no Brasil durante o festival É Tudo Verdade, entre os dias
20 e 30 de abril, no Rio e em São Paulo.
? Ter o sentimento pleno da vida e perdê-lo é uma coisa que sempre me
intrigou muito. Havia um certo receio de que se repetisse, até comigo mesmo. Aí
comecei a ler sobre os ventos de 68 e identifiquei isso nas pessoas que viveram
intensamente aquele momento ? confessa o realizador carioca de 54 anos na
seguinte entrevista ao GLOBO.
Em que circunstâncias você reencontrou os registros caseiros de
dona Eliza na China?
Quando finalizávamos ?Santiago?. Eu precisava de imagens da casa onde minha
família morou (hoje a sede carioca do Instituto Moreira Salles), na
Gávea, e pedi a alguém para procurar. Encontramos as imagens, mas eu não sabia
direito o que eram, qual o sentimento dela durante a viagem. Aí encontrei uma
reportagem que ela escreveu sobre a viagem, em forma de diário, para a revista
?O Cruzeiro?. Fiquei muito impressionado com a comoção dela diante de tudo o que
viu lá. Minha mãe e a Revolução Cultural são opostos absolutos, seria fácil
imaginar uma reação dogmática. Mas não, ela ficou deslumbrada com aquilo. E eu
fiquei tocado com esse deslumbramento dela e com a intensidade com que ela o
descreveu, porque minha mãe foi perdendo isso com o tempo.
E como se deu a ligação desses relatos de dona Eliza com os
eventos de Maio de 1968?
As duas coisas começaram a se relacionar na minha cabeça naturalmente. A
gente tinha ido morar em Paris por causa do golpe militar no Brasil; meu pai
tinha sido ministro do Jango e achou que poderia haver algum tipo de retaliação
à família. O que lembro daquele período é que as coisas estavam pegando fogo, e
de fugirmos às pressas. As coisas foram se conectando na minha cabeça sem muita
ordem. Mas essa ideia de ter o sentimento pleno da vida e perdê-lo é uma coisa
que sempre me intrigou muito, além do receio de que isso se repetisse. E aí
comecei a ler muito sobre 68 e identifiquei esse sentimento nas pessoas que
viveram intensamente aquele momento. Li as memórias dos jovens líderes
revolucionários e, à exceção do Daniel Cohn-Bendit, na França, que estava
vocacionado para a alegria, percebi que eles ficaram presos ao dogmatismo
ideológico e, quando aquilo passou, poucos souberam se reinventar, ser
inteligentes na vida cotidiana. E isso me lembrava a minha mãe. Aí as coisas
começaram a se conectar.
?Santiago? já tinha um grande componente autobiográfico. Foi
particularmente penoso, desta vez, com ?No intenso agora?, lidar com as imagens
e a memória de sua mãe?
Não foi. Foi mais uma maneira de me aproximar da memória dela do que qualquer
outra coisa. Também houve o esforço de recuperar alguma coisa que estava
perdida. Para mim, tem afeto nesse trabalho. Mas o filme, mesmo, só foi nascendo
nos quatro ou cinco anos em que durou o trabalho de edição. Não tinha filme
antes de entrar na edição. Nesse sentido, ele nasce do trabalho, não é um filme
que nasce de uma ideia.
A única referência aos movimentos estudantis de 1968 no Brasil são
imagens do velório do estudante Edson Luís, morto por um aspirante da PM no
Restaurante do Calabouço, Centro do Rio, feitas à época pelo Eduardo Escorel e
pelo então cineasta e crítico de cinema José Carlos Avellar…
Os caminhos do filme me levaram a só tratar do Edson Luís. Porque ?No intenso
agora? não é um filme sobre o movimento de Maio de 68. Se um documentário vira
algo enciclopédico, ele tende a fracassar. Tratei de Paris, principalmente,
porque estive lá e a intensidade daquilo foi imensa e durou pouco, que é uma
coisa que me interessa. Tem Praga porque representa o bode de Maio de 68, é o
fim da utopia. Quando os tanques russos invadem a capital tcheca é o momento em
que a cortina cai de verdade, é quando os sonhos daquela geração chegam ao fim.
E vão derivar, aqui na Alemanha, para as ações do grupo guerrilheiro
Baader-Meinhof e, na Itália, para as articulações das Brigadas Vermelhas, e o
movimento se perde.
Mas a origem de tudo está na ligação emocional com aquele momento,
a partir da experiência de sua mãe?
Acredito que disso alguma coisa brotará, como coisas brotaram dos movimentos de 68, mas não exatamente aquilo que eles desejamMas também está ligada a uma questão maior: o que fazer para dar sentido à
vida? Quando isso é dito fora do contexto do filme, me soa pretensioso, mas acho
que é uma questão que perpassa todo mundo. Como dar sentido à vida e o que fazer
quando você o perde? E o que acontece nesses momentos de grande intensidade, em
que você encontra aquilo que não tinha antes ? seja a paixão amorosa, estética
ou política, ou mesmo o desejo de fazer uma revolução ?, isso vai-se,
desaparece. E aí?
?No intenso agora? também é dedicado ao documentarista Eduardo
Coutinho, falecido em 2014.
O Coutinho está por trás desse filme do início ao fim. O uso político do
mártires ? as pessoas que não morrem como pessoas, mas como cadáveres que servem
a uma causa ? era a coisa que preocupava muito o Coutinho. Isso já estava em
?Cabra marcado para morrer? (1984), e ele fala sobre isso na faixa comentada da
edição do DVD do filme. Isso me marcou. Quando vi as cenas extraordinárias do
enterro do estudante tcheco Jan Palach, morto durante os protestos contra o fim
da Primavera de Praga, lembrei-me do caso do Edson Luís, e também dos mortos
franceses, e foi aí que quis comparar. O material sobre o Palach me despertou o
interesse pelos enterros públicos das vítímas de 68. Percebo que há conexões
entre elas, e os mortos da direita não fazem parte da História, nem da
literatura e muito menos dos filmes sobre o período.
Vê alguma relação entre os movimentos de 68 e os de 2013, no
Brasil?
Aqui na Alemanha, alguém chegou a me perguntar se os eventos de 2013
influenciaram de alguma forma o ?No intenso agora?. Mas eles aconteceram quando
os trabalhos de edição do filme já haviam sido iniciados. Tendo a pensar
exatamente o contrário, que o filme que eu estava fazendo me fez olhar para os
eventos brasileiros meio que antecipando um final… não diria melancólico,
porque seria injusto, mas muito rápido, em busca de uma direção que não
conseguiu encontrar. O que não significa que não deixou efeitos. Mas acredito
que disso alguma coisa brotará, como coisas brotaram dos movimentos de 68, mas
não exatamente aquilo que eles desejam. A agenda de quem saiu para as ruas em
2013 foi derrotada, haja vista a situação no Brasil hoje. Assim como a agenda
das pessoas que foram para as ruas em Paris também foi derrotada: o governo de
Charles de Gaulle se fortaleceu, a democracia liberal da livre iniciativa
permanceu, a família tradicional foi marchar em peso pela volta à normalidade, o
consumismo começou. A agenda específica de 68 fracassa, mas a agenda que eles
não imaginavam se impõe, e ela é progressista, e ela é civilizatória: o
movimento feminista, o do negro, o abrandamento da hierarquia na França. Tenho a
esperança de que alguma coisa semelhante aconteça no Brasil. Alguma coisa se
espalhou, só não está nomeada. Mas está lá, está querendo tomar forma.