SÃO PAULO ? Em sua 11ª edição, aberta na quarta-feira, o Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo trouxe o feminino e a discussão de gênero para o primeiro plano. Não fosse apenas o fato de 45% dos diretores com filmes na seleção serem mulheres, a grande homenagem do ano foi ainda para a paulistana Anna Muylaert, diretora de ?Que horas ela volta?? (2015), longa premiado nos festivais de Sundance (pelas atuações de Regina Casé e Camila Márdila) e Berlim (melhor filme na mostra Panorama). A abertura do festival foi feita, no Memorial da América Latina, com uma pré-estreia de seu novo longa, ?Mãe só há uma?, centrado no drama de um adolescente que tenta entender a fluidez de sua identidade sexual enquanto vive o trauma de descobrir que foi roubado na maternidade. Na manhã de quinta, um debate juntou Anna a Laerte, célebre cartunista que em 2009, depois de algumas experiências como crossdresser (algo que Pierre, o protagonista do filme, interpretado por Naomi Nero, também vive) assumiu definitivamente a persona feminina.
? Gostei muito do filme porque a transgeneridade não é uma questão protagonista. Ela aparece como um fato da vida do Brasil, de uma geração jovem que lida com a questão de uma forma que é chocante inclusive para boa parte da população trans ? contou Laerte ao GLOBO, antes do debate. ? Para muitos trans, essa indefinição, esse jogo duplo e todas essas possibilidades podem significar que a questão não esteja sendo levada a sério.
?Mãe só há uma? é definido por Anna Muylaert como ?um filme mais barato, com uma equipe menor e gente jovem?, ?um grito de rebeldia de um adolescente que quer ser quem ele é, por mais estranho que pareça?. Parte da trama é baseada na história do garoto Pedrinho, que foi roubado na maternidade por Vilma Martins em 1986, em Brasília, e foi encontrado pelos pais 16 anos depois em Goiânia, vivendo como filho de Vilma. O longa, que estreou nacionalmente ontem, tem uma sessão amanhã, às 20h, no Espaço Itaú, com presença da diretora e um debate com a youtuber Lully.
? Na gênese do filme não havia essa questão de indefinição de gênero do protagonista, ela apareceu mais próximo de começarmos a filmar, por causa de vivências minhas em São Paulo ? disse Anna ao GLOBO. ? ?Mãe só há uma? é o ponto de vista de um adolescente que está caindo no abismo da perda de identidade. Ele experimentava algumas coisas quando vivia com a mãe que o roubou da maternidade e, quando vai viver com a mãe biológica, sente-se desconfortável. A pressão o ajuda a quebrar a casca do ovo.
?TUDO AINDA É MUITO NOVO?
Anna prefere não caracterizar como transgênero o personagem interpretado por Naomi Nero (que ganhou o papel antes que a diretora soubesse que ele tem uma irmã transgênera, Nicole).
? O Pierre é o que se chamaria de um indivíduo com gênero fluido. Tudo ainda é muito novo, todas essas novas formas de sexualidade e de identidade de gênero estão surgindo de forma muito forte. A maior parte da sociedade não entende isso, só os jovens ? analisou Anna. ? O filme é um libelo contra o autoritarismo dos pais.
? Até uns dez anos atrás, a transgeneridade não era uma possibilidade para mim ? revelou Laerte, cuja irmã mais nova é grande amiga de Anna desde os tempos da faculdade. ? Era só um elemento que entrava nas minhas histórias, um elemento de farsa, como em tantos filmes em que homens se vestem de mulher para escapar de determinadas situações. Ultimamente, os trans vêm sendo encarados dramaticamente de um modo sério, sem que os filmes sejam pesados. E é muito significativo o fato de os dois diretores de ?Matrix? (as irmãs Wachowski) serem hoje duas diretoras.
A homenagem a Anna Muylaert no festival incluiu uma retrospectiva com seus curtas, telefilmes e os três longas: ?Que horas ela volta?”, ?É proibido fumar? (2008) e ?Durval Discos? (2002).
Na noite de quarta, antes da sessão de ?Mãe só há uma? ? que reuniu cerca de dois mil espectadores, apesar do frio e de a exibição ser ao ar livre ? Anna foi muito aplaudida ao receber do cineasta e presidente do Memorial da América Latina, João Batista de Andrade, o troféu do Memorial.
? Precisamos contar a história do ponto de vista das mulheres ? disse ela, que dedicou o prêmio às estudantes de cinema e, em seguida, puxou um coro de ?fora Temer?. ? Volta, democracia, a gente não quer mentira.
*Silvio Essinger viajou a convite do Festival de Cinema Latino-Americano