RIO ? Quase tudo precisa ser mudado nas escolas brasileiras para que o ensino se
torne mais atraente, nas palavras do português José Pacheco, que participa de um
grupo de trabalho criado pelo Ministério da Educação (MEC) para identificar
projetos inovadores no país. Ainda assim, o educador tem esperança no futuro do
ensino nacional. Conhecido por seu trabalho na Escola da Ponte, em Portugal, da
qual foi diretor por mais de 30 anos, Pacheco vai ser um dos debatedores da mesa
?O aluno como protagonista?, no segundo dia do encontro internacional Educação
360. O evento será realizado pelos jornais O GLOBO e ?Extra?, em parceria com
Sesc e Prefeitura do Rio e com apoio da TV Globo,
da Coca-Cola Brasil e do Canal Futura, na Escola Sesc de Ensino Médio, em Jacarepaguá, nos dias 23
e 24 de setembro.
? Prefiro falar de protagonismo quando falo de autonomia. A autonomia é
sempre construída num exercício de relação. Ninguém é autônomo sozinho. A
aprendizagem não está centrada no professor, nem no aluno, mas numa relação ?
diz Pacheco, que está terminando um livro sobre comunidades de aprendizagem, uma
forma de ensino que busca humanizar a educação para que ela promova o
desenvolvimento sustentável, ideia promovida pela ONG EcoHabitare, na qual ele atua como diretor-pedagógico.
Como o senhor define o tão falado protagonismo do
aluno?
Com preocupação. Observo que se confunde protagonismo com individualismo e
que algumas práticas decorrentes desse equívoco não são mais do que tentativas
de mitigar um velho e pernicioso modelo de escola. Na convicção de que basta dar
um laptop a cada aluno para que ele aprenda, em nome do seu protagonismo,
algumas iniciativas têm transformado alunos em solitários monstrinhos de tela de
computador. Esse tipo de crença pedagógica ? crença, pois carece de
fundamentação científica ? assume a sua máxima expressão no chamado Blended Learning, que, em bom português, deveria ser
chamado de aprendizado misturado ou aprendizado híbrido. Porém, ingênua e
indevidamente esse conceito foi designado como ?ensino híbrido? e comprado por
milhões por várias universidades brasileiras. A substituição da palavra
aprendizagem (ou aprendizado) pela palavra ensino não acontece por acaso. É
reflexo do condicionamento operado no seio de práticas sociais que a escola
convencional reproduz. Hoje, este modelo de escola ainda é hegemônico e produz
ignorância, doença nos professores e a infelicidade de muitos seres
humanos.
Como o protagonismo deveria ser estimulado nas escolas?
Prefiro falar de protagonismo quando falo de autonomia. A autonomia é um
conceito de vasto espectro semântico, mas é sempre construída num exercício de
relação. Isto é: ninguém é autônomo sozinho. A aprendizagem não está centrada no
professor, nem no aluno, mas numa relação, que pressupõe a existência de
vínculos cognitivos, políticos, afetivos e emocionais, nos quais o sujeito que
está aprendendo se assume protagonista com os outros.
Como permitir que mais alunos tenham autonomia?
Consideremos as chamadas competências chaves do século XXI: interagir em
grupos heterogêneos da sociedade, agir com autonomia e usar ferramentas
interativamente. São competências que, dificilmente, o modelo de ensino
convencional consegue desenvolver, porque a autonomia não é permitida, mas
estimulada quando é vivida. Aprende-se autonomia e cidadania no exercício da
cidadania, em espaços de liberdade responsável, onde se pratica a escuta atenta
e se respeita a diversidade de opinião. Isto em contextos nos quais aprendo a me
reconhecer para reconhecer a existência do outro e sua autonomia.
Que mudanças a escola precisa sofrer para se adaptar a essa nova
realidade?
As escolas vão se transformar quando houver rupturas com uma tradição de
educação que respondeu a necessidades sociais dos estados nação do século XIX e
da Revolução Industrial, mas que não fazem sentido em pleno século XXI. São
práticas que nos remetem a propostas educacionais de mais de um século: os
docentes estruturam cursos, planejam aulas… Até mesmo escolas que se chamam de
?alternativas? frequentemente adotam metodologias de aprendizagem
fossilizadas.
Como essas mudanças podem ser colocadas em prática? Quais as mais
urgentes?
Já estão em prática no Brasil, em muitos lugares onde professores
conscientes, competentes e éticos rejeitam replicar modelos importados. E
percebo que o Brasil começa a manifestar sensibilidade, particularmente o poder
público, sobre a necessidade de criar condições de sustentabilidade de projetos,
que considero inovadores. Uma das mudanças urgentes e necessárias será a
negociação dos termos de autonomia a que, de forma implícita, a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional alude e a meta 19 do Plano Nacional de
Educação requer. Não acontecerá mudança em escolas privadas de autonomia e
carentes de gestão democrática.
Qual o papel do professor nesse novo contexto?
Nos projetos que acompanho, e com os quais aprendo, os professores deixam de
professorar para assumir uma dupla tarefa: a de tutor e a de mediador de
aprendizagem. Ele propicia condições favoráveis à construção do conhecimento.
Não prepara projetos para os alunos; constrói projetos com os aprendizes. O seu
papel é diverso: colaborar com roteiros de pesquisa, avaliar, apoiar os jovens
na elaboração dos seus planejamentos, estimular o trabalho em equipe, fomentar
processos de conhecimento mútuo, valorizar a diversidade cultural, contribuir
para a aprendizagem em ambiente colaborativo. Nesse contexto, os jovens assumem
autonomia, aprendem a interpretar e analisar a realidade com liberdade. Porque
não se prepara para a cidadania, educa-se no exercício da cidadania.
De que forma a situação profissional, salarial e a formação dos
professores influenciam essas mudanças pela qual a educação está
passando?
A formação de professores continua imersa em equívocos,
continuamos presos a um modelo de formação cartesiano, que impede um conexão
essencial. Sabemos que um formador não ensina aquilo que diz, mas transmite
aquilo que é, veicula competências de que está investido. Mas ainda há quem
creia que a teoria precede a prática, quem considere o formando como objeto de
formação ? quando deveria ser tomado como sujeito em autotransformação, no
contexto de uma equipe, com um projeto. Prevalecem práticas carentes de
comunicação dialógica, culturas de formação individualistas, de competitividade
negativa, de que está ausente o trabalho em equipe ? o trabalho em equipe
pressupõe um permanente convívio, estabilidade e lealdade a valores e a
princípios de um projeto ? sem espaço para o desenvolvimento de talentos sob a
forma de currículos subjetivos. Quando a formação buscar contribuir para a
reelaboração da cultura pessoal e profissional dos professores, o estatuto
social da profissão vai se elevar, o salário melhorará, mudanças profundas
acontecerão.
O que precisa mudar nas escolas brasileiras para tornar o ensino
mais atraente?
Quase tudo. A começar por insistir menos no ensino e mais na criação de
condições de aprendizagem, porque toda formação é autoformação.
Como é o trabalho da ONG Ecohabitare, que o senhor coordena?
Os educadores da Ecohabitare não pretendem contribuir para melhorar
o modelo de escola dito convencional ou tradicional. Não buscam mitigar os seus
efeitos, mas conceber novas construções sociais, com a contribuição das novas
tecnologias e sem dispositivos pedagógicos como a aula, ou outras práticas
fósseis. É essa a vocação da Ecohabitare.
Como a Ecohabitare
atua?
Através do Gaia Escola, um dispositivo de transformação vivencial do qual
emergem projetos transformadores, fundamentados numa nova visão de mundo e de
ser humano, projetos de desenvolvimento sustentável. A Ecohabitare convida educadores para a cocriação de
projetos de vida e de vida com os outros, projetos nos quais o conhecimento
produzido se converte em ações propiciadoras da melhoria da qualidade de vida
das suas comunidades.
O que pode ser feito para melhorar a situação atual da
educação?
Nos últimos anos, apesar da profusão de tentativas de reforma, programas,
projetos, congressos, cursos e afins, não se conseguiu melhorar a qualidade da
educação nacional. Mas o Brasil tem tudo aquilo de que precisa. E essa vontade
será alcançada quando as escolas deixarem de estar presas a um modelo
educacional obsoleto e de uma gestão burocratizada, na qual os critérios de
natureza administrativa se sobrepõem a critérios de natureza pedagógica.
Como o senhor vê o futuro da educação no Brasil?
Há quem diga que os educadores brasileiros deverão ser otimistas. Eu não
encaro o futuro da educação do Brasil com otimismo, mas com esperança. Porque o
otimismo é da natureza do tempo, enquanto a esperança é da natureza da
eternidade. E aquilo que hoje fizermos, vai repercutir por décadas.