SÃO PAULO – O cientista político do Insper Fernando Schüler vê o descontentamento da classe média americana com os efeitos da globalização como um dos motivos que levaram Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. Para ele, o republicano, um outsider do mundo político, conseguiu capturar bem a demanda nacionalista que existe no país. Schüler diz ainda não ter dúvidas de que Trump terá uma postura mais amena quando assumir a presidência. Leia abaixo o depoimento do cientista político ao GLOBO:
?Nós temos hoje uma mutação da democracia representativa, a emergência de um novo modelo de representação muito mais espontâneo em que as pessoas têm instrumentos de participação direta na política, propiciada pela tecnologia. Isso significa um enfraquecimento relativo das instituições tradicionais de representação e, em algumas circunstâncias, dá margem a fenômenos de tipo populista. Acredito que o Trump expressou a ideia de que há um certo cansaço da democracia representativa em que o candidato outsider tem um grande apelo. No mundo inteiro isso vem acontecendo.
No caso específico dos Estados Unidos, existe o descontentamento com efeitos da abertura econômica, o deslocamento de plantas de matriz produtiva para países emergentes. Foi bom para o mundo de maneira geral porque gerou empregos em muitos países em desenvolvimento, mas houve um custo em grande medida pago pela chamada classe média trabalhadora americana. Então, essa reação instintiva contra a globalização gera uma demanda nacionalista que o Trump conseguiu capturar muito bem.
O mundo contemporâneo não pode mais ser entendido a partir da dicotomia direita e esquerda. A crítica à globalização foi durante 30 anos a bandeira da esquerda. O Trump é um fenômeno paradoxal e muito curioso: por um lado apelou ao conservadorismo cultural e por outro tem um programa econômico mais à esquerda do que o que foi apresentado pela Hillary Clinton.
Não tenho a menor dúvida de que vai haver uma diferença entre o Trump na campanha e na presidência. Hoje já vimos um discurso ameno, conciliador, respeitador em relação a Hillary Clinton. As pessoas podem se surpreender e talvez esse clima catastrofista que tomou conta do mundo eventualmente não se sustente. Não vejo os Estados Unidos embarcando numa aventura populista. Uma coisa é o discurso de campanha e outra a ação de governo. Ele é um empresário pragmático, vai ter preocupação com seu legado. Um outro detalhe importante que as pessoas se esquecem é que os Estados Unidos possuem instituições muito fortes. A aprovação de acordos internacionais exige a aprovação do Congresso e ele vai enfrentar uma série de limitações para implementar suas políticas.
Acho que o Trump foi bem-sucedido em constituir uma dúvida ética sobre o comportamento da Hillary especialmente no caso dos e-mails. A candidatura ficou fragilizada do ponto de vista ético, há muitos questionamentos sobre a capacidade de liderança da Hillary. Ela se pautou por um discurso reativo, partiu da ideia de que simplesmente denunciar o conservadorismo de Trump e sua suposta ameaça ao mundo seria o suficiente para ganhar a eleição, mas talvez ela não imaginou que com isso refletisse um pouco a cultura do establishment americano, da classe média urbana, mais cosmopolita, com mais escolaridade. Talvez o segmento da América afetada pela globalização, não eventualmente alinhada com o discurso politicamente correto da classe médica cultural, escapou ao discurso da Hillary. Os democratas não souberam dialogar com esse perfil da sociedade americana.
Acredito que o discurso da força, de que é preciso dar um basta no terrorismo, pesou a favor de Trump. Ele conseguiu estruturar bem esse discurso como empresário de sucesso, empreendedor, alguém que vai retomar essa proeminência dos Estados Unidos no cenário global. Em grande medida, uma eleição se resolve na competência que cada candidato tem de estruturar um discurso e ele foi melhor nisso?.