RIO – Clara surge longilínea, depilada, de corset de renda, salto alto e longos cabelos loiros, invadindo a cena. Num flashback, assiste a um show e flerta com um homem, que é zoado pelos amigos: Clara é travesti. Com raiva, o homem a seduz e, depois, a espanca. Corta. A cantora Barbara é vista aos beijos com o agressor. Ela o leva para um quarto e o algema. Barbara sai de cena. Dá a vez à travesti, que ameaça o espancador. Todos esperam que ela se vingue, mas… (veja o vídeo, abaixo, lançado neste domingo no site do GLOBO). A história é o pano de fundo do clipe ?Your armies? (?Seus exércitos?), de Barbara Ohana, dirigido por Allexia Galvão e Daniel Rezende, indicado ao Oscar pela montagem de ?Cidade de Deus?. E Clara… Bem, Clara é Cauã Reymond, quase irreconhecível. Uma semana após o atentado homofóbico que matou 49 pessoas numa boate gay de Orlando, o vídeo, gravado em abril, é um manifesto pela tolerância. Links Tolerância
? Apesar de ser um tema pesado, tentei transmitir delicadeza na minha interpretação, já que esse é um assunto importante e precisa ser discutido ? explica Cauã, que passou dois meses sem malhar para perder massa muscular e andou muito de salto pela casa para se acostumar com o papel. ? Infelizmente, esse clipe está saindo num momento muito oportuno, e isso só reforça a mensagem que queríamos passar. As pessoas precisam aprender a respeitar as diferenças, independentemente de orientação sexual, religiosa, política.
? Esse atentado é um retrato terrível do que acontece no mundo ? diz Barbara. ? A violência e o desrespeito à diversidade são infelizes partes do nosso cotidiano. Não acho importante me posicionar só como artista, mas também como ser humano. A tentativa é evoluir e provocar a evolução.
A palavra provocar salta aos olhos quando se vê o novo comercial de maquiagem da Shiseido, que disputa o festival de publicidade de Cannes. No vídeo, que viralizou e virou assunto nos últimos dias, meninas japonesas são mostradas de outro modo. E o espectador logo vê como aparências enganam.
? O preconceito vem muitas vezes da ignorância ? diz o artista plástico paulistano Fernando Codeço. Barbara Ohana, Your Armies
Radicado no Rio, há uma década ele cria obras inspiradas em travestis da Lapa e da Glória, onde morou. ?Olympias? surgiu justamente do que ele percebeu que sentia em relação a elas.
? Vi que de algum modo eu mesmo participava daquele preconceito. Aquilo me incomodava e ao mesmo tempo instigava minha curiosidade ? explica o artista, que passou a retratá-las e exibiu o resultado recentemente na mostra ?Vênus nos espelhos?. ? Meu trabalho não levanta bandeira, não é panfletário. Mas acredito que possa somar nessa batalha cotidiana contra a homofobia. Tendemos a não entender o que não conhecemos.
Diretor do premiado filme ?Tatuagem? (2013), que trata da relação amorosa entre um soldado reprimido e o libertário líder de um cabaré, na ditadura, o pernambucano Hilton Lacerda lamenta não só a tragédia de Orlando, mas a enxurrada de comentários preconceituosos que se seguiu.
? A gente deveria ter conquistado um grau de civilidade, mas o que vejo é um retrocesso muito grande. O século XX foi de ultrapassar processos, a gente se acostumou mal, e agora parece que nós estamos andando para trás. Daqui a pouco seremos acusados de provocar a ira dos que não nos aceitam ? diz ele. ? No momento em que discutimos essas questões de visibilidade de gênero, cumpre à arte desmistificar. Não falo de colocar o assunto num lugar inatingível onde tudo parece resolvido, mas onde a problemática existe. Não é mera afirmação.
Para o poeta paulista Ricardo Domeneck, que vive em Berlim e publicou um longo desabafo e uma poesia ao saber de Orlando, as artes também têm o poder de lembrar o lugar que os LGBTs ocuparam em diferentes eras.
? As artes podem nos mostrar a relação que outras culturas e épocas tiveram com a ideia de um gênero mais fluido ? diz ele, citando, entre outras, a poesia homoerótica árabe de autores como Abu Nuwas e Ibn Sahl, que viveram no século VIII. ? Roma, antes de Constantino, era tão tolerante quanto a Atenas clássica. Os homofóbicos tentam fazer crer que sua ordem social tem sido a ?natural? por séculos. Isso é uma grande mentira.
O pernambucano Marlon Parente ? publicitário e diretor do documentário ?Bichas?, visto quase 500 mil vezes no YouTube desde fevereiro ? busca tirar o estigma da palavra que dá título a seu filme, que retrata jovens gays narrando orgulhosamente suas trajetórias.
? Imergir uma pessoa numa realidade diferente da dela e fazê-la refletir é algo que só a arte consegue. Ainda mais falando de vivências LGBT ? diz. ‘Aceite-C’, de Rico Dalasam
Para o rapper Rico Dalasam, porém, a arte ainda precisa fazer muito pelas causas gays. Sensação do queer rap, vertente gay num gênero muitas vezes acusado de ser homofóbico, Rico pode ser considerado o retrato de uma minoria.
? Por tempos me achei errado por amar assim, me calei para não gritar que amava, e o rap me deu justamente as palavras e a habilidade de usá-las. Trabalhar na música já é um superdesafio. Agora, estabelecer uma identificação com um mundo que não sabe lidar comigo é uma construção a cada episódio ? conta o morador de Taboão da Serra, na periferia de São Paulo. ? Mesmo assim, não foi a arte que me ajudou a me empoderar, e sim a rejeição. Foi não me ver representado por ela que me deixou cheio de ousadia para tentar mudar esse panorama.
Antes mesmo da tragédia em Orlando, o recém-formado coletivo Salada das Frutas já bradava: ?É hora de resistência e luta. Cantar liberdades, corpos e amores. Denunciar preconceitos, conquistar direitos e quebrar barreiras. É o momento de desconstruir conceitos?, diziam, em manifesto, o cantore Liniker, a cantora Tássia Reis e o trio As Bahias e a Cozinha Mineira, encabeçado pelas trans Assussena Assussena e Raquel Virgínia.
? Nossa mensagem é que queremos, podemos e seremos felizes e livres. A sociedade vai nos ver brilhar sempre, mesmo que muitos nos queiram na lama ? afirma Raquel. Bichas, o documentário
Como canta MC Queer no vídeo ?Fiscal?, que se espalhou pelas redes há menos de um mês: ?O fervo também é luta?.
*Colaborou Nani Rubin