Cotidiano

Com cartas inéditas, livro retrata relação entre Caio F. e Hilda Hilst

caio hilda.JPGRIO ? O ano é 1992. Depois de mais uma briga com Caio Fernando Abreu, Hilda Hilst juntou as cartas que havia recebido do amigo
desde o final da década de 1960, decidida a destruí-las. Como para oficializar o
rompimento, ignorou o valor histórico e afetivo da correspondência, e só não a
queimou porque seu namorado na época, o jovem poeta Antônio Nahud Júnior, resolveu intervir.

?Quer para você? São suas. Leve-as daqui rápido antes que eu me arrependa?,
disse a escritora. Nahud guardou as cartas e, em 2010, seis anos após
a morte de Hilda e 14 após a de Caio, vendeu-as para a jornalista Paula Dip.

A autora, que em 2009 retratou a sua própria amizade e correspondência com o
escritor gaúcho no livro ?Para sempre teu, Caio F.? (Record), emocionou-se ao ler o material inédito.
As missivas mais antigas mostravam um Caio diferente daquele que ela conhecera,
já consagrado e com uma obra construída. O escritor que trocava suas primeiras
cartas com Hilda era, ao contrário, um jovem saído da adolescência, inseguro
sobre o seu futuro e sua arte. Além de uma fonte preciosa sobre sua formação,
contudo, também havia ali a história de amizade de dois autores importantes da
literatura brasileira, que Paula transformou no coração de seu recém-lançado
?Numa hora assim escura ? A paixão literária de Caio Fernando Abreu e Hilda
Hilst? (José Olympio).

No livro, a jornalista contextualiza a relação tumultuada e apresenta, pela
primeira vez, o conteúdo salvo por Nahud Júnior.

? Comprei as cartas de Nahud num
impulso, e quando eu as li minha primeira ideia foi fazer um mestrado em cima
delas ? conta Paula, que conheceu Caio em 1981 e foi sua amiga até a morte dele,
em 1996. ? Mas depois percebi que, mais interessante do que levá-las para a
academia era tomá-las como base de um novo livro sobre o Caio, em cima da
relação com a Hilda.

A importância de Hilda na vida de Caio é notória. O escritor começou a se
corresponder com a poeta aos 19 anos de idade, ainda em Porto Alegre. Entre 1969
e 1971, passou uma série de temporadas na Casa do Sol, chácara em Campinas (SP)
para onde Hilda havia se mudado em busca de isolamento e inspiração. A
residência era um oásis de liberdade em meio ao clima político da época. Os
convidados de Hilda (incluindo jovens aprendizes como Caio) eram estimulados a
trabalhar sua escrita, e falava-se de amor, de magia, de discos voadores e,
claro, literatura.

Para um rapaz tímido, que não se encaixava nos círculos sociais tradicionais, o contato
com a efervescência criativa ? e permissiva ? da Casa do Sol e com uma autora consagrada e tão
certa de seus caminhos foi um turning
point
. Mas o que as cartas revelam de novo,
segundo Paula, é uma influência mútua. De certa forma, Caio, que foi o primeiro
dos muitos pupilos que a escritora ?hospedaria? em seus quase 40 anos na
chácara, também teria inspirado Hilda.

? Claro que houve uma influência forte da Hilda na forma de o Caio trabalhar.
Mas acho que ele também foi um dos responsáveis por uma guinada na vida dela ?
opina Paula. ? O encontro foi benéfico para os dois. No início dos anos 1970,
Caio ainda estava circulando ali pela Casa do Sol, e a Hilda, depois de ser
muito premiada com poesia, publica seu primeiro livro em prosa, ?Fluxo-Floema?. Caio pode tê-la ajudado a se
libertar da estrofe.

O autor de ?Morangos Mofados? vê em Hilda uma referência de artista
comprometida com sua arte. Ela havia abandonado uma vida no high society e
namoros com estrelas de Hollywood, como Dean Martin, para se dedicar mais profundamente à
escrita, que não via como entretenimento ou distração, mas como uma experiência
visceral. Ela seguia toda uma ética da criação, que norteou a carreira de Caio.
A sua aproximação de Hilda o fez se afastar espiritualmente de sua primeira
musa, Clarice Lispector. Não por acaso ele faz, em uma carta de 1978, duras críticas a um livro póstumo da autora (leia trecho abaixo).

Para além da relação mestre-discípulo, porém, há uma ligação marcada pelo
aprendizado conjunto. Como observa Paula, ambos tinham uma tendência natural
para as ?escuras regiões transcendentes da alma?, eram ?almas gêmeas em relação
aos mistérios insondáveis da existência?. Hilda cultivava a aura de ?feiticeira que captava a
essência das pessoas?. Já Caio vestiu sem medo a manta de xamã e se jogou nas
experiências místicas da Casa do Sol, que envolviam alienígenas e forças
misteriosas. Como não poderia deixar de ser, a correspondência é marcada por
frases como ?uma ótima revolução solar?, ?tenho me voltado cada vez mais para o
oculto?, “os céus andam cheios de discos voadores e os crepúsculos têm durado duas horas” ou ?estou procurando a simplicidade e, ao mesmo tempo, o mito e a
magia?.

Palavra Rara038.jpgEm sua busca espiritual e esotérica, Hilda inventava apelidos
excêntricos para Deus ? Cara Mínima, Sumidouro, Menino Precioso, Flamejante
Sorvete de Cereja. Ambos também tinham uma maneira peculiar de descrever a
literatura. Em uma entrevista que fez com Hilda em 1987 para a revista ?Leia
livros?, Caio pergunta: ?E a sua literatura, é a escuridão ou o sorvete??. Ela
responde: ?É o centro, a procura do centro?.

? Eles eram curiosos da morte, da alma, não escreviam livros de viagem ou de
culinária, escreviam o ?de dentro?, e faziam isso para sobreviver ? afirma
Paula. ? Eles se encontram muito nisso, inclusive nesse misticismo. Me disseram
que, numa noite na Casa do Sol, Caio encarnou o espírito de Frederico García Lorca e ele e Hilda fizeram uma
performance. Os céticos achavam que eles eram loucos.

Para o crítico Ítalo Moriconi,
que acaba de relançar em e-book
?Cartas: Caio Fernando Abreu? (e-galáxia),
organizado por ele em 2002, essa correspondência inédita amplia o conhecimento que se tinha da ligação entre
Caio e Hilda.

? Acredito que a publicação em larga escala desse conjunto de cartas favorece a transição do olhar contemporâneo do cronista para o olhar mais construtivo do historiador ? diz ele. ? Favorece uma renovação do olhar crítico da literatura brasileira pós anos 1960 e pré gerações 2000 e 2010 do século corrente. As cartas do Caio para a Hilda certamente constituem um instigante “caso” de história da vida literária. O mais fascinante delas são as discussões e impressões sobre literatura. Mas a relação entre os dois tinha dimensões pessoais muito fortes. O pessoal e o formativo se confundem. Na verdade, o “romance de formação” de Caio teve muito a ver com essa segunda mãe musa transgressiva, permissiva e bela. Nas cartas, recuperamos um pouco da presença selvagem da literatura de Hilda no nosso cânone dos anos 70/80.

A correspondência incluída no livro vai até o ano de 1990, e cobre a evolução
de uma amizade oscilante, temperada por brigas e reconciliações. Praticamente apenas
Caio escreve para Hilda (há só um bilhete e uma carta da autora no livro), e
muitas vezes se queixa do silêncio da interlocutora. Mas ele era um ?epistolista?, lembra Paula, contando que enviava
até cinco cartas por dia a pessoas diferentes, mesmo sabendo que poderia não
receber resposta. Em tom confessional, as missivas eram repletas de amor à vida,
mas também de lamentos em voz alta, nos quais ele chorava suas dificuldades emocionais, profissionais e financeiras.

Após a discussão que quase resultou na destruição das cartas, os dois
retomaram a amizade e passaram a se falar quase todos os dias, por telefone, até os
últimos dias de vida Caio, que morreu precocemente aos 45. Hilda, que garantia
captar as vozes dos mortos via ondas de rádio, contou em uma entrevista que o
amigo veio visitá-lo logo após sua passagem: ?A gente tinha combinado isso. Ele estava com um cachecol
vermelho. Era a nossa senha: o vermelho ia significar que estava tudo bem. Eu abracei Caio muito e disse: ‘Nossa, como você está bonito! Está jovem! Mas ninguém acredita.?

TRECHOS

Em carta a Caio em 23 de setembro de 1977, Hilda fala sobre a relação com os
jornalistas e críticos:

?Penso que isso de escrever provoca sempre no outro um desejo de, vontade de
parecença, de posse, e em vez de acarinharem a gente, dizerem isto, o que seria
muito bom para a gente porque é sempre gostoso o carinho o desejo o gosto, pois
bem, ficam dando chifradas e ironizando?

Em carta enviada a Hilda em 18 de dezembro de 1978, Caio critica obra de Clarice Lispector:

“No mais, tô lendo o livro póstumo de Clarice, ‘Pulsações’, e achando muito chato, repetitivo, aquela coisa de ‘Escrevo em estertor. Escrever me é. A luz se me entra. Cada palavra é o avesso de nenhuma’ – entende? Ai, meu saco. Acho que ela morreu na hora certa, porque tava repetindo demais a receita”.