Domingo, 26 de junho, foi dia de Parada Funk. O funk é um movimento cultural carioca de grande força, principalmente nas comunidades. Muitas vezes, ele é visto com preconceito e relegado à subcultura, sem que se perceba a criatividade e o sentido crítico embutido nas suas letras. O ritmo contagia e mobiliza a juventude para dançar e cantar.
Entretanto, o que se viu foi um aparato exagerado de som no Aterro do Flamengo, que atormentou por 12 horas consecutivas os ouvidos dos moradores de Gloria, Lapa, Santa Teresa e Flamengo e, também, de quem trabalhava no evento. O que seria música se transformou num ruído ensurdecedor, uma algaravia de gritos e urros. Os grupos se alternavam, ou se apresentavam simultaneamente, passando a sensação de um festival de gritaria dissonante transmitido por gigantescas caixas de som. Nesse volume, nem Beethoven!
Até a altura do Museu da República, cerca de mais de um quilometro em direção à Zona Sul, a barulheira ecoava. Bate-estaca antirrepublicano, já que se impôs desrespeitosamente, disputava o domingo com grupos de meditação, com risadas de crianças e acrobatas e com músicos de instrumentos de sopro. Assim como atingiu e quebrou uma escultura no Museu de Arte Moderna, é possível que os estratosféricos decibéis tenham atingido peixes e aviões. O bate-bate reverberou em toda a região, fazendo vibrar as janelas, ininterruptamente, durante o dia inteiro e parte da noite, obrigando milhares de pessoas a conviver com o que não escolheram, transformando todos em vítimas inocentes de agressão ambiental e à saúde.
A poluição sonora pode causar danos irreversíveis ao aparelho auditivo e ao organismo humano como um todo, já que se associa a estresse, depressão, insônia, agressividade, dor de cabeça, gastrite, zumbido. O ruído em decibéis em áreas com vocação recreativa não deve ultrapassar 65 dB(A) durante o dia e 55 dB(A) durante a noite. Para a Organização Mundial de Saúde, um ruído de 50 dB(A) já prejudica a comunicação e, a partir de 55dB(A), pode causar danos. Ao alcançar 75 dB(A), pode haver perda auditiva se o indivíduo for exposto por períodos prolongados. Acima de 120 dB(A) ? níveis encontrados em concertos de rock e discotecas ?, o ruído pode causar lesões irreversíveis ao sistema auditivo, mas podem ocorrer lesões mesmo a partir de 85 dB(A). Segundo informa André Trigueiro, em texto intitulado ?Rio 2016: capital mundial do barulho?, houve 68.389 queixas contra ruídos excessivos em 2012 ? superadas apenas por tráfico de drogas e violência doméstica. Entre as queixas mais frequentes estão aquelas contra bailes funk. Até aí, nada de novo. A novidade é a prefeitura patrocinar, apoiar e não fiscalizar. Quantos aparelhos para medir a poluição sonora a prefeitura possui? Onde estão? Como o cidadão comum pode ter acesso a eles e solicitar avaliação?
Qualquer modelo de organização da cultura, seja ela funk, samba ou ópera, que privilegie o monumental e viole o princípio básico da diversidade tende a produzir desgosto a todos. Não agrada aos aficionados ? o número de expectadores não passou de algumas poucas centenas de pessoas ? nem aos que preferem outras manifestações. A cidade dos grandes eventos e dos grandes ganhos corre o risco de ser a cidade dos grandes erros. Prefiro, como Luiz Antonio Simas, as pedrinhas miúdas; ?o resto são as coisas e pessoas poderosas ? inimigas dos rios e das ruas ? e suas irrelevâncias?.
Suely Rozenfeld é pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz