Rodian nasceu em 1981, há exatos 35 anos, filho de um cruzamento de Kirk, filho de Douglas do Maracanã, com a própria mãe, Brigitte, o que fazia dele filho do seu irmão. Seu nome foi escolhido em homenagem a Rodion Romanovitch Raskolnikoff, o torturado protagonista de ?Crime e castigo?, de Dostoievsky. Uma mistura do prenome (Rodion, que era feio de se pronunciar) com o apelido do personagem (Rodia). Rodion + Rodia = Rodian. Muitos passantes o chamavam Roger. Alguns o acusavam de ter ?nome de fabricante de inseticida para baratas?.
Com seus fartos pelos acaju, multifacetados e franjudos, Rodian do Maracanã era ao mesmo tempo altivo e fofo, pois, ao contrário dos exemplares mais ?corretos? da raça, era parrudo e baixo, com o focinho quadrado ? em vez de alto e magro, com o focinho pontudo.
Naquele tempo, quando a beleza ainda tinha certa predominância nas preferências dos donos de cães de raça e a ditadura do feio ainda não se havia instituído, os setters irlandeses, ruivos (bem mais comuns que os ingleses, malhados), reinavam no Rio de Janeiro em meio a outros clássicos: pastores alemães, dálmatas, cockers, pointers, dinamarqueses, beagles. E, infelizmente, poodles tosados em forma de arbustos franceses, que sobrevivem até hoje, escravizados pela estética frufru.
Não que todos os cães em voga fossem formosos: encarar o prognatismo dentuço de um pequinês era sempre um desafio; buldogues já tinham a cara amassada; os bassês arrastavam a barriga nas pedras portuguesas; os chihuahuas (que me perdoe a capa da revista…) já se pareciam com ratos; e as miniaturas de pincher, feias e neuróticas ao extremo, já torturavam donos, vizinhos e visitas.
Mas o feio e o belo conviviam democraticamente dentro de uma tradição de linhagens conhecidas, que, por sua vez, deixavam os sempre adoráveis vira-latas, anjos extemporâneos, correndo por fora e conquistando famílias sensíveis às suas peculiaridades e resistência.
Rodian era belo, atípico e louco, não só por ser fruto de um incesto, mas porque os setters não regulam bem mesmo, daí sua graça: apatetados, lembram o jeitão de Odie, o cão que sofre bullying de Garfield, o gato. Mas, diferentemente de Odie, que é estúpido, a loucura do setter é genial e trafega no terreno das abstrações mais insólitas. Naquela primeira metade dos anos 1980, os cães ainda eram admitidos sem restrições nas areias das praias. Por um lado, foi bom que isso viesse a acabar. Mas quem viveu a época e gosta de cães sabe também dos prazeres que tal liberdade proporcionava, principalmente se a gente a usava nos horários em que havia menos gente, bem cedinho ou nos fins de tarde dourados de Copacabana.
Porém, quando a praia estava cheia, Rodian praticava estranhas modalidades: atraído pelas duplas de frescobol, criou um jogo particular que consistia em correr atrás da sombra da bola, e não da bola em si (ela existe?). A depender da posição do sol, então, e enquanto a bola não caísse, a perseguição fazia-o descrever percursos que podiam ser retas diagonais ou paralelas à linha do jogo, pequenas elipses, círculos ou, simplesmente, ficar parado, se o percurso da sombra era curtíssimo. Quando, enfim, a bola caía, ele se aproximava e, decepcionado, olhava para os jogadores (e para o dono) como a evocar o fenômeno da anteposição do objeto à luz.
Suas carreiras em alta velocidade, na areia dura, paralela à arrebentação, atrás de gaivotas que sobrevoavam mais ao fundo, podiam levá-lo do posto 2 ao posto 5 em três minutos. Depois voltava e batia com o focinho no dorso da mão, para reafirmar o prazer e a amizade.
Cavava buracos profundíssimos, esperava que a água os preenchesse e boiava, de barriga para cima. Excelente nadador, mergulhava, furava onda e, quando vinha um tijolo, sabia direitinho que era hora de voltar e ? pasmem ? descia de jacaré. Às vezes levava um caixote e reaparecia da espuma, atabalhoado mas feliz. Sabia torturar o dono na hora de ir embora, fugindo a todo custo do enforcador. A captura podia durar uma hora e criar indisposições que levavam a um ou dois dias de muxoxos mútuos antes das pazes. Mas na calçada e na hora de atravessar a rua, ficava solto e obedecia aos comandos que aprendera em poucas seções de adestramento, na adolescência.
Lembro do dia em que chegou, com um mês, e chorou à noite. Eu o pus sobre o peitoral e senti as patinhas se engancharem na pele, e seu sono entremeado por tremores e gemidos, pesadelos de bebê. Recordo seu amadurecimento: aí, era eu quem chorava e ele vinha dar conselhos, punha as duas patas sobre meus antebraços e transmitia, nos olhos e no arfar, um saber que estancava a dor.
E também de sua velhice, num banco de calçadão, sorvendo a polpa de um coco feito um néctar derradeiro. Não corria mais. Olhava o vento, pela janela, ou na rua, e refletia sobre o fim e o sem-fim.