Cotidiano

5ª edição da Flupp começa nesta terça com atração de realidade virtual

RIO ? Ao colocar os óculos de realidade virtual, entramos na pele de José Luís Farias da Silva, que perdeu o filho num tiroteio entre traficantes e policiais militares, em 1996. Por alguns minutos, somos transportados para sua casa na Favela de Acari e assumimos o ponto de vista do pai enlutado. Seus olhos são nossos olhos. Enxergamos seus braços se moverem como se fossem nossos, seu ventre subir e descer como se respirássemos por ele. Silva segura uma foto do filho, e, por reflexo, tentamos acompanhar os movimentos dele. Enquanto isso, vemos e ouvimos sua esposa, Penha, sentada diante de nós, relatando a manhã em que Maicon foi morto enquanto brincava em frente de casa. O menino tinha 2 anos.

Criado em Barcelona por um grupo de pesquisadores e artistas, o projeto ?Machine to be another? (Máquina de ser outro) é uma das principais novidades da 5ª edição da Festa Literária das Periferias, a Flupp, que começa hoje, na Cidade de Deus. Combinando áudios, vídeos em 360 graus, realidade virtual e técnicas de neurociência, a experiência cria uma ilusão cerebral que faz o usuário ver-se e sentir-se no corpo de outro. De amanhã até domingo, o público poderá acompanhar diversas histórias de moradores da favela, como José e Penha, que tiveram amigos ou parentes mortos. As sessões, gratuitas, acontecem das 14h às 22h, na praça principal da Cidade de Deus. Haverá também, em datas e horários a serem confirmados, performances de teatro imersivo, que irá misturar a realidade virtual e a física, colocando o visitante frente a frente com os narradores da histórias.

? O sistema é uma adaptação de elementos de neurociência, que criam essa ilusão de perspectiva ? diz o artista interdisciplinar paulistano Philippe Bertrand, um dos criadores do projeto. ? Não é como se estivéssemos em outro corpo o tempo todo, mas, por um par de segundos, cria-se um conflito de identidades. Ao ver-se no corpo de uma mulher, por exemplo, o cérebro de um homem fica o tempo todo tentando lutar contra essa ideia. Por um instante, ele pensa: ?Esse é meu! Ah não, não é meu?. Isso imprime com muita força uma imagem na memória. Observamos que, na semana seguinte, a pessoa fica dando voltas, continua pensando sobre aquilo. E esse processo de refletir sobre o que experienciou dentro da perspectiva do outro cria uma conexão ainda mais profunda com a história.

Em quatro anos de existência, o ?Machine to be another? já passou por diversos países promovendo interações ? uma mãe que quis ?entrar? no corpo da filha adolescente para voltar a se conectar a ela, uma dançarina paraplégica espanhola mostrou a sensação de estar numa cadeira de rodas, e grupos de refugiados contaram suas dificuldades para chegar até Londres. Como o objetivo é promover empatia e compaixão, o projeto costuma trabalhar com coletivos e comunidades que sofrem algum tipo de vulnerabilidade social.

? Há grupos que são colocados no lugar do ?outro? e que precisam ser compreendidos socialmente. Mas, com a máquina, a pessoa deixa de ser ?o outro?, e passa a ser parte do próprio grupo de quem vê ? diz Bertrand. ? Quando a gente trata alguém como ?o outro?, não consegue sentir sua dor. A gente está justamente querendo romper essa separação. Como o José Silva me disse, existe um problema, e esse problema é de todos nós.

No Brasil pela primeira vez, o ?Machine to be another? participa da Flupp dentro da iniciativa do festival de ampliar a sua programação para outras formas narrativas.

? Tudo o que a gente procura no festival é ter essa possibilidade de calçar o sapato do outro, mas também de ir aonde está aquele sapato ? explica o escritor Julio Ludemir, um dos criadores da Flupp. ? Numa cidade que pensa em condomínios e guetos, há uma necessidade de deslocamento literário, para poder enxergar e narrar o mundo a partir desse lugar do outro. Por isso, a proximidade com a ideia proposta pelo projeto ?Machine…?. Gostaríamos de ser aquela máquina.

A festa literária (veja destaques da programação abaixo), que nesta edição terá mais de 50 autores de 20 nacionalidades e homenageará o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu (morto há 20 anos), vem buscando há cinco anos chamar a atenção para a realidade e a produção artística das minorias periféricas. Como parte das celebrações pelos 50 anos da Cidade de Deus, os convidados debaterão temas como racismo, machismo e homofobia. Mas o recorte específico do ?Machine to be another? em torno de narrativas de moradores que perderam parentes não é um acaso, já que uma das principais plataformas do festival neste ano é a morte em escala industrial de jovens na periferia.

? No projeto ?Machine…? temos um narrador diferente, esse que perdeu alguém para uma coisa que o Brasil não reconhece, o racismo ? diz Ludemir. ? Todos as histórias contadas fazem parte de uma ferida com a qual o país não sabe lidar.