Em entrevista ao Jornal O Paraná, o diretor da 10ª Regional da Saúde, João Gabriel Avanci, fala sobre o início da vacinação contra a covid-19 no Paraná e na região, que marca o começo de um combate mais efetivo ao novo coronavírus.
Contudo, ele reforça que a população não pode baixar a guarda, pois não há perspectiva de quando essa guerra estará vencida.
Avanci explica ainda os critérios para definir os grupos prioritários. A íntegra você confere abaixo:
O Paraná – O que este início de vacinação significa para o setor de saúde, para os profissionais que estão há quase um ano no combate à doença e para as pessoas que vão receber as doses?
João Gabriel – Estamos há dez meses, mais de 300 dias de pandemia… Quando as primeiras notícias chegaram, no fim de 2019 da China, nós, profissionais da saúde, equipe da 10ª Regional, começamos a imaginar que seria complexo porque esse tipo de vírus, quando vem muito forte, causa um estrago muito grande. Chegou efetivamente em março. Quando estávamos com o Show Rural prestes a acontecer, com participação de comitivas da China (obviamente que todos os cuidados foram tomados), começaram as fake news sobre a pandemia e impactou o serviço da saúde de uma maneira que ninguém estava esperando. As equipes não estavam preparadas e não estão, no ponto de vista de tratamento, porque não existe ainda um tratamento efetivo e definitivo para a doença. Todas estão em constante preparação, constante adaptação e prática para mudar. Não poderíamos usar os mesmos leitos de hospitais com esses pacientes porque a infecção é muito rápida, não dá para saber o desdobramento da doença na pessoa, se vai ficar grave ou não. O mais difícil para as equipes de saúde foram as contaminações, os afastamentos de profissionais da linha de frente, muitos foram hospitalizados, muitos vieram a óbito, perdemos profissionais para essa doença e isso gerou uma dinâmica muito complexa, porque não dava para abrir leitos. Para nós, profissionais da saúde, a imunização representa a possibilidade de garantir segurança para esses profissionais da linha de frente o máximo possível.
O Paraná – Mesmo com a vacinação, é preciso manter os protocolos sanitários?
João Gabriel – Esse é o ponto mais importante. Estamos imunizando o pessoal da linha de frente porque não tem vacina pronta para vacinar todo o mundo. São prioritários por quê? Para que a gente tenha mão de obra nos hospitais para atender as pessoas que não se cuidaram ou que adquiriram a doença mesmo se cuidando. Falo de maneira mais impactante porque, agora, temos um horizonte de vacinas para daqui a pouco, quando os insumos vierem e as fábricas conseguirem dar conta do recado. Um dado importante: a pessoa que estiver com a doença ou que teve nas últimas quatro semanas não vai poder tomar a vacina, ou seja, antes a gente não tinha uma perspectiva de até quando iríamos ficar usando máscara, álcool em gel ou não poder se reunir. É cansativo, as pessoas meio que desistiram, mas agora nós temos um horizonte. É hora de usar máscara, álcool em gel, evitar aglomeração. Dá para viver? Dá para sair na rua? Sim, é só tomar os cuidados. Se visitar familiares, que seja com poucas pessoas, conversando de longe. Não dá para bobear porque, quando a vacina vier para todos, se estivermos doentes, não vamos poder ser vacinados.
O Paraná – A vacina não impede de pegar a doença?
João Gabriel – Vou até parafrasear o secretário da Saúde, Beto Preto, que esteve em Cascavel, anunciando a vacina e trazendo essa palavra de esperança do governo do Estado e do governador Ratinho Júnior. Menciono isso porque é um esforço muito grande e o Paraná tem trabalhado com cautela justamente por isso. Beto Preto disse assim: “A vacina não pode ser um álibi para você voltar à vida normal”, porque não significa que, estando imunizado, esteja livre da doença. A vacina tem um índice de proteção de 50%, ou seja, protege, mas não isenta da doença, porém, os estudos mostraram que o desenvolvimento da doença em quem está vacinado é mais leve, não leva para UTI, não causa agressões graves na pessoa. Ou seja, temos ainda a possibilidade, mesmo vacinados, de desenvolver a doença, ficar afastado e transmitir para outras pessoas.
A vacina é uma ferramenta a mais para que possamos continuar contando com os guerreiros da linha de frente, e os chamamos assim porque, como estamos no dia a dia acompanhando todo o processo, observamos problemas psicológicos por causa disso, com medo de levar a doença para casa, e até medo de pegar a doença, porque sabe o sofrimento que é.
O Paraná – Por enquanto temos duas vacinas com uso emergencial autorizado pela Anvisa, a Coronavac, que começou a ser aplicada essa semana, e a de Oxford, que ainda será distribuída. A pessoa que tomou a primeira dose precisa tomar a segunda dose da mesma vacina?
João Gabriel – Exatamente! Cada vacina é formulada de uma maneira. Não vou entrar em aspectos técnicos, até porque não tenho formação farmacêutica para falar tecnicamente da composição, mas o que precisa ficar claro é que a Coronavac tem uma composição, feita de uma maneira, são duas doses, intervalo de 25 dias, e tem que ser cumprido esse processo porque elas se complementam para gerar uma resposta do organismo em relação à doença. A vacina insere no teu organismo um agente externo que desperta no sistema imunológico o combate daquele agente externo. Como é um agente externo inativado ou atenuado, não vai causar doença, mas vai causar resposta do organismo e as células do sistema imunológico da gente criam uma memória e, quando se deparar lá na frente novamente com o vírus da covid-19, vai combatê-lo efetivamente. Se você começar com uma vacina e trocar, essa memória imunológica vai se perder no meio do caminho e vai ter pouca resposta. Com duas doses, grosseiramente falando, mas para ilustrar, o organismo se fortalece para combater de uma maneira mais forte e duradoura. É por isso que todos os anos tem que tomar vacina, porque a resposta imunológica vai se enfraquecendo e precisa novamente de estímulo para manter a resposta em alta para, quando o vírus aparecer, ter condições de combatê-lo.
O Paraná – O intervalo entre uma dose e outra das duas vacinas é diferente. É importante respeitar esse tempo para ter a resposta desejada?
João Gabriel – Os testes que foram feitos notaram que, para uma resposta imunológica satisfatória, o intervalo mínimo entre a dose tem que ser seguido. Por exemplo, a Coronavac, em 25 dias a resposta foi boa. Já a de Oxford, o intervalo é maior, de três meses. Se tomar num intervalo diferente, sai do parâmetro testado e pode não ter a eficiência testada, por isso o intervalo tem que ser respeitado e tem que ser do mesmo material.
O Paraná – As autoridades de saúde têm o registro por paciente e vão realizar o monitoramento para que não haja confusão nesse sentido?
João Gabriel – Exatamente. Às vezes, a gente não percebe porque o SUS (Sistema Único de Saúde) trabalha isso nos bastidores, mas tivemos um treinamento on-line para todos os vacinadores do Estado e isso dá mais de mil pessoas, do registro das doses, com um sistema de informação criado só para isso: registrar meticulosamente quem tomou a vacina do Instituto Butantan e quem tomou a vacina da Fiocruz para não ter esse cruzamento de vacinas, porque isso inviabiliza o processo. A parte talvez mais importante do processo de imunização, além da própria vacina, é o registro e o controle dessas doses, rastreando as pessoas para que tomem na data certa, porque é um investimento muito alto, social e econômico, que precisa ser garantido.
O Paraná – Neste primeiro momento, para a região oeste pouco mais 17 mil pessoas serão imunizadas. Gostaria que você explicasse essa estratégia de atender um pouco de cada grupo (profissionais de saúde, idosos, índios). Como foi criada essa estratégia?
João Gabriel – Tratam-se dos dados de internação e de óbitos e, principalmente, os dados de dificuldade com as equipes de saúde que estavam perecendo, sendo infectadas, às vezes ajudando a transmitir, porque lidam com várias pessoas. Basicamente, são esses dados que levaram a uma conclusão por qual grupo começar, considerando que não tem vacina ainda para todo o mundo. O que foi levado em consideração, como disse o secretário Beto Preto, nessa estratégia de imunizar profissionais da linha de frente, idosos institucionalizados, população indígena e pessoas com deficiência, também institucionalizadas, é para dar um impacto de frente com a pandemia. Primeiro, você imuniza os grupos mais vulneráveis, no caso dos idosos das instituições que convivem na mesma casa. Eles sofrem mais, via de regra, com a infecção pela covid-19. Tivemos muitos surtos em instituições que hoje chamamos de ILPI (Instituições de Longa Permanência para Idosos), antigamente eram asilos, casas de repouso, onde, se pega em um, pega em vários. O profissional que atua nesses lugares acaba sendo talvez um vetor dessa doença e a população idosa é a que fica mais tempo internada, deixa a estrutura hospitalar mais indisponível, exige mais demanda de medicamento porque a recuperação é mais difícil e mais lenta, enfim, vários fatores.
Linha de frente: além de questão técnica e de segurança, é uma questão de respeito, porque eles estão totalmente expostos e precisamos garantir que não serão infectados, preservando a integridade física deles, não permitir que levem a doença embora nem tragam de fora para dentro das instituições, garantindo que a gente possa contar com eles.
Tivemos dificuldade em abrir leitos nos hospitais por falta de profissionais. Em muitos casos, tínhamos respiradores, monitores, medicamentos, espaço físico, mas não tínhamos profissionais. Os que estão trabalhando, estão exaustos, no limite, trabalhando com máximo de horas extras que conseguem porque, volta um que melhorou da doença, sai outro que pegou a doença. Estava muito difícil.
Já a população indígena é a mais vulnerável, porque a resposta imunológica é diferente pois não tem muito contato com o branco e vive em grupos, aglomerados, e gera uma imensa preocupação de se dizimar uma tribo inteira, por exemplo. Já no caso das pessoas com deficiência, os motivos foram os parecidos com os grupos de idosos.
O Paraná – A produção da vacina no Brasil está concentrada na Fiocruz e no Instituto Butantan. Muitas pessoas questionam por que não levar essa produção para universidades, com campos de pesquisa avançados no Paraná, para que produzam também. Por que isso não é possível?
João Gabriel – São vários os fatores e esse é um tema muito relevante. As instituições de ensino no Paraná e as pesquisas científicas presentes aqui são diferenciadas. Até existem memes na internet que falam que o Paraná é a “Rússia brasileira”. O Paraná é um estado que possui um perfil acadêmico e intelectual parecido com o europeu, que possui os melhores centros do mundo e não fica para trás com relação à própria Fiocruz ou o Butantan, porém, a expertise manda muito nesse caso.
Se você espalhar demais a questão da ciência, fragmenta muito a qualidade. Por que temos duas grandes instituições do Brasil desenvolvedoras de medicamentos que são expoentes na pesquisa, a Fiocruz e o Butantan? Para concentrar ali recursos e investimentos. Os equipamentos utilizados para esse tipo de pesquisa são muito caros e a quantidade de pessoas dedicadas a esse tipo de pesquisa ainda é pouco. Às vezes as pessoas dizem “Poxa, vai um dinheirão para pesquisas e não vemos muito resultados”. As pesquisas são demoradas, a pessoa tem que dedicar a vida para isso. Então, além do aspecto tecnológico, você precisa ter profissionais focados nisso. Isso trouxe esse tema de volta à tona: a pesquisa científica brasileira precisa ser estimulada. Como o secretário da Saúde disse: não vamos conseguir em seis meses, um ano, mas é algo que está sendo trabalhado. Contamos com vários bolsistas da Fundação Araucária, uma das mais respeitadas no âmbito da pesquisa científica no Brasil, a Escola de Saúde Pública do Paraná já lançou um programa de pós-graduação que prevê o pagamento de bolsas para colocar esse pessoal na linha de frente para trabalhar em pesquisas, levantar dados, o alicerce necessário para que a pesquisa possa se desenvolver no futuro. Leva tempo, mas daqui a pouco vai vingar.
O Paraná – Em quanto tempo você acha que se pode imunizar a maior parte da população brasileira e começarmos a ver um horizonte de normalização da situação?
João Gabriel – Gostaria muito de fazer uma previsão, mas, para não me contradizer, hoje, não tem como. Não podemos delimitar um prazo. Diria que, se a gente continuar se cuidando, se os insumos para a produção das vacinas vierem, se a aprovação emergencial se tornar permanente, se tudo isso se juntar, podemos ter um horizonte de talvez um ano para frente. A meta do Estado do Paraná, de acordo com o Plano Nacional de Vacinação, é imunizar até maio 4 milhões de paranaenses, que são os grupos prioritários, além dos atuais: idosos em geral e pessoas com comorbidades, trabalhadores do sistema prisional, população carcerária, professor, caminhoneiro, se ao me engano são 12 grupos prioritários. Imunizando essa parcela da população, começamos a garantir maior segurança no ponto de vista de transmissão da doença. Ainda falta todo o restante da população. A vacina, tendo em número suficiente, vai chegar para todo o mundo, mas depois disso, até a imunidade ter o efeito esperado na sociedade, duvido muito que em menos de um ano isso aconteça. Talvez poderemos transitar mais livremente, mas, deixar de usar máscara, hoje não dá pra pensar nisso, pois, quanto mais intensificar esses cuidados, será mais rápido. Temos que fazer a nossa parte.
O Paraná – A vacina contra a covid-19 deve entrar no calendário vacinal anual?
João Gabriel – Infelizmente, a covid-19 entrou em circulação e a resposta imunológica muda. Vai fazer parte do calendário permanentemente. Vamos ter mais uma no calendário e ainda bem que moramos no Brasil, que possui o melhor sistema de imunização do mundo, os insumos são permanentes, não temos dificuldade em vacinar nem em distribuir.
O Paraná – Existem muitas brincadeiras na internet, sobre “virar jacaré”, ter chips implantados porque a vacina é chinesa, falam até da falta de eficiência da vacina. Como isso atrapalha na conscientização e na adesão à imunização?
João Gabriel – O avanço tecnológico, esse acesso à informação, traz vantagens, porém está cada vez mais difícil separar o que é verdade e o que é fake news. Às vezes, numa brincadeira despretensiosa, dependendo do contexto, fica parecendo verdade, principalmente se for de alguém que as pessoas confiam, formadores de opiniões. Esse tipo de coisa atrapalha demais. É importante pensar que as vacinas, em geral, não têm a finalidade de proteger a pessoa apenas, mas de promover uma proteção coletiva, da sociedade toda.
Tem que colocar numa perspectiva “o que eu estou fazendo?” Primeiro buscar informação e depois, se decidir que não quer ou não gosta, que mantenha o seu direito mas não propague informação que sem base porque isso atrapalha todo um processo de imunização e coloca em risco vida de pessoas inocentes.
O Paraná – O presidente Jair Bolsonaro tem repetido que ninguém será obrigado a tomar a vacina. O que pode acontecer se houver baixa adesão?
João Gabriel – É pouco provável que a adesão seja baixa, por mais que seja questão de posicionamento individual. Essas falas são opiniões divergentes, mas o SUS oferta e está disponível para a população. O Brasil é um país democrático e as pessoas têm seus direitos garantidos e, em tese, não são obrigadas a nada. Estratégias como campanhas de mídia levam a população a perceber que faz sentido, sim, se imunizar. Tenho certeza de que a população em geral vai tomar.
O Paraná – Já existe uma previsão para a segunda leva de doses?
João Gabriel – A estratégia do Paraná é baseada no Plano Nacional de Imunização. O que isso quer dizer? Que dependemos das decisões e das interações do Ministério da Saúde. O que se espera é que as questões de insumos que vêm de outros países se desenrolem. O mundo precisa da vacina e gera concorrência que atrapalha previsões.
Hoje a vacina é um item de primeira necessidade. Com a vacina aprovada, a produção deve aumentar e atender a todos. Esperamos que logo todo o mundo tenha acesso aos insumos, porque a capacidade de produção de vacina é grande.
O Paraná – Para encerrar: devemos continuar mantendo então os protocolos de prevenção?
João Gabriel – Sem dúvida! É o melhor remédio. É doloroso, difícil, todos estão cansados, não podemos nos abraçar, mas esperamos que as pessoas não percam o calor humano e que daqui a pouco vamos poder tirar o atraso.
O mais difícil para as equipes de saúde foram as contaminações, os afastamentos de profissionais da linha de frente, muitos foram hospitalizados, muitos vieram a óbito
Beto Preto disse assim: “A vacina não pode ser um álibi para você voltar à vida normal”, porque não significa que, estando imunizado, esteja livre da doença
A vacina é uma ferramenta a mais para que possamos continuar contando com os guerreiros da linha de frente
Fotos: Pedro H Prado