Cotidiano

Vitória de prefeitos que bancaram a própria campanha cresce 50%

SÃO PAULO e RIO Encerrado o primeiro turno das eleições municipais, em que a ampla maioria das cidades definiu seu próximo governante, um fenômeno já pode ser constatado. O número de prefeitos que se elegeram botando a mão no próprio bolso para bancar suas candidaturas cresceu 50% em comparação à eleição passada. A partir de 2017 eles representarão, pelo menos, 41% dos prefeitos no país (2.197). Em 2012, no primeiro turno, esse número era de 1.458, ou seja, 26%. O aumento é um dos efeitos das novas regras de financiamento eleitoral, que proibiram a doação por empresas, mas, por outro lado, liberaram o uso pelos candidatos de patrimônio próprio para custearem as campanhas. Isso já preocupa políticos e especialistas em Direito Eleitoral, que apontam o risco da política se transformar num “clube de ricos” se o movimento se repetir nos próximos anos.

Os números foram obtidos pelo Núcleo de Dados do GLOBO num levantamento inédito feito na semana passada, após o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) disponibilizar um balanço geral do resultado do primeiro turno. Para a pesquisa, a reportagem considerou os prefeitos que arcaram com recursos próprios mais de 50% das doações recebidas por sua campanha. Ou seja, mais do que candidatos, eles atuaram como principal financiador de suas candidaturas.

Hoje o candidato pode doar para a própria candidatura o valor que desejar desde que não supere o teto de gasto fixado pelo TSE para as campanhas. Até a eleição passada, o autofinanciamento tinha um limite: 50% do patrimônio informado pelo postulante à Receita Federal.

A eleição de candidatos ricos, muitos deles novatos na política como o prefeito eleito de São Paulo, João Doria (PSDB), que desembolsou R$ 2,9 milhões para custear a própria campanha, começou a provocar reação no meio político assim que o primeiro turno terminou. O relator da comissão da reforma política na Câmara, Vicente Cândido (PT), saiu em defesa de um limite para a autodoação nas próximas eleições. Para ele, a regra atual acabou legalizando o “abuso do poder econômico”.

A primeira reunião da comissão está marcada para a próxima terça-feira e o foco do grupo é o financiamento eleitoral. Muitas lideranças partidárias já falam em criar um fundo aos moldes do fundo partidário para evitar em 2018 a escassez de recursos verificada este ano nos caixas das campanhas.

Candidatos de pequenas e grandes cidade recorreram à autodoação como forma de viabilizar seus nomes. Entretanto, percebe-se que ela tem mais importância em municípios menores, onde é tradicionalmente mais difícil arregimentar doadores. Em muitas dessas cidades venceu a eleição quem colocou mais dinheiro na campanha. São casos como de Serra da Raiz (PB) e Presidente Castelo Branco (SC), com menos de 3 mil habitantes. Nos dois municípios, os vencedores bancaram 100% da sua candidatura com recursos próprios. A paraibana Adailma Fernandes (PTB) gastou R$ 12 mil para se eleger, enquanto seus adversários desembolsaram, no máximo, R$ 300. Na cidade catarinense, Ademir Miotto (PMDB) investiu R$ 25 mil, contra R$ 1 mil dos concorrentes.

Embora em escala menor, o fenômeno também ocorreu em capitais como Palmas, onde o prefeito reeleito Carlos Amastha (PSB) bancou 89% da campanha, investindo R$ 3,9 milhões na campanha, mais do que Doria na maior cidade do país. O candidato mais rico desta eleição, Airton Garcia (PSB), de São Carlos, que tem 240 mil habitantes no interior paulista, venceu a disputa. Ele bancou 76% da campanha dele (R$ 191 mil) e, entre seus adversários, foi o quem fez a maior doação.

Das 5.568 prefeituras no país, 96% (5.356) já definiram o nome do próximo governante no início deste mês. Em outras 55 haverá segundo turno e, em 157, o resultado eleitoral está sob judice e não foi considerado no levantamento feito pelo jornal.

Até agora, a autodoação foi a segunda maior forma de financiamento da eleição municipal (35%), só perdendo para as doações de pessoas físicas (41%). Em terceiro lugar ficaram as doações de partidos, patrocinadas prioritariamente pelo fundo partidário (23%). No primeiro turno, os mais de 14 mil candidatos a prefeito no país arrecadaram juntos R$ 1,1 bilhão. Isso é menos da metade do dinheiro movimentado em 2012 (R$ 2,3 bilhões em valores não atualizados), prova de que a minirreforma eleitoral de 2015 mexeu com os padrões de arrecadação com que estavam acostumados os políticos brasileiros.

?Café Society?

Por trás da mudança do financiamento eleitoral, especialmente a proibição de doações por pessoas jurídicas, está a tentativa de moralização das campanhas em tempos de Lava-Jato, mas, para especialistas em Direito Eleitoral ouvidos pelo GLOBO, elas geraram efeitos colaterais e um deles é favorecer postulantes com mais poder aquisitivo.

? O risco é que a política se transforme em um clube de ricos, estilo ?Café Society? ? disse Fernando Scaff, professor da Universidade de São Paulo (USP), referindo-se ao filme de Woody Allen, que retrata um grupo de endinheirados de Hollywood nos anos 1930.

Scaff não é contra ricos participarem da eleição, mas pondera que deve haver “igualdade de armas” nas disputas.

? Para ser democrática a disputa, diferenças de riqueza precisam ser juridicamente neutralizadas para permitir que as pessoas concorram em igualdade de condições. A melhor fórmula para isso é estabelecer um teto fixo para as doações ? defende o professor, para quem a continuidade do modelo atual poderá levar “à maior oligarquização da eleição, isto é, quem tem mais dinheiro poderá dar as cartas do jogo eleitoral”.

Pesquisador da FGV-Direito São Paulo, Diogo Rais concorda que a disputa eleitoral sofreu um desequilíbrio com a nova regra, mas ele considera polêmica a fixação de um teto para as autodoações.

? Eu me pergunto se não pode ser questionado do ponto de vista constitucional você impedir alguém de usar o próprio dinheiro como acha mais adequado. Por outro lado, a proliferação de candidatos ricos pode ser um desestímulo à democracia.