Cotidiano

Um Plano Real fiscal

A PEC que se propõe a limitar os gastos primários é comparável a iniciativas como o Plano Real (1994), o Regime de Metas de Inflação (1999) e a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000). A proposta é capaz de estancar o crescimento nada silencioso dos gastos primários, de 0,3% do PIB, em médias anuais. Mesmo em cenário de mediocridade de crescimento e com inflação elevada, ainda assim os gastos parariam de crescer em percentual do PIB.

Trata-se de uma proposta de consolidação fiscal de médio prazo baseada em corte de gastos, e não um ajuste fiscal de curto prazo sustentado em aumento de tributos. A duração proposta para o novo regime fiscal transmite previsibilidade, consistência intertemporal e mitiga riscos de ciclos políticos.

A PEC aumenta o poder de discricionariedade das autoridades econômicas em relação à reconhecida rigidez orçamentária atual. Particularmente, tem-se a mudança no cálculo do piso para gastos com Saúde e Educação, trocando o indexador para o IPCA, em vez da receita com impostos. É uma espécie de DRU para essas duas despesas. Isso não significa necessariamente que governos usariam tal espaço fiscal adicional, mas o ganho de discricionariedade estaria disponível para ser acionado.

O que poderia ter sido adicionado à proposta? Primeiro, o governo não poderia perder essa oportunidade para extinguir indexações ao salário mínimo de benefícios constitucionais. Segundo, estabeleceu-se um teto inicial elevado de despesas primárias, usando o ano de 2016 corrigido por um IPCA alto. Poderia repetir os mesmos valores nominais de despesas pagas em 2016 no Orçamento de 2017 e, a partir de então, faria a atualização pelo IPCA para o Orçamento de 2018 em diante. Isso permitiria gerar resultados primários mais rapidamente.

Terceiro, as punições previstas são brandas e podem ser inócuas. Afinal, os salários dos servidores e as contratações realizadas em exercício anterior já seriam favas contadas. Um aperfeiçoamento poderia ser a imposição de tais punições até que o teto fosse novamente alcançado, descontados, a valor presente, os gastos anteriores que levaram ao estouro do teto.

Quarto, metas de dívida bruta associadas aos limites de gastos seriam bem-vindas, o que poderia evitar que o teto proposto virasse a meta de gastos. Assim como seria oportuna a regulamentação de conselho de gestão fiscal, já previsto na LRF, ou mesmo a adição da autoridade fiscal independente, conforme a PEC 83/2015.

A PEC do teto não garante que não haveria prioridades invertidas. Podem-se manter gastos pouco eficientes e, ao fim, ter de cortar gastos mais eficientes. Por isso, teremos que discutir muito abertamente sobre qualidade de gastos públicos no Brasil.

Afinal, faz sentido o país conviver com aposentadorias precoces? Ou é aceitável abrir mão de políticas de redução da desigualdade de renda para financiar abastados estudando em universidades públicas ou acessando serviços públicos de saúde? É mais eficiente gastar tanto com o Benefício da Prestação Continuada da Lei Orgânica da Assistência Social e com abono salarial em detrimento de gastos com educação na primeira infância?

Com a PEC, revigoram-se as esperanças de que teremos mandatoriamente de caminhar rumo a um debate franco sobre a qualidade dos gastos públicos.

Márcio Holland é professor na Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas