Cotidiano

Tom Ford volta ao papel de diretor com ?Animais noturnos?

NOVA YORK ? ?Por favor, me chame de Tom?, diz, com voz afável, o interlocutor, logo no primeiro contato. O pedido é sincero, mas difícil de ser assimilado e atendido imediatamente. Afinal, trata-se do americano que ressuscitou uma marca à beira da falência, a italiana Gucci, no início dos anos 1990, e que rapidamente se tornou uma celebridade do mundo da moda, antes de criar a sua própria grife, que hoje fatura cerca de US$ 1 bilhão por ano. O mesmo artista e empresário que, no auge de uma crise profissional e pessoal, reinventou-se como diretor de cinema, ao lançar ?Direito de amar? (2009), filme que deu ao ator britânico Colin Firth a sua primeira indicação ao Oscar.

Quando todo mundo já estava tomando aquela aventura fora dos ateliês e das passarelas como um mero capricho, eis que ele retorna ao terreno do cinema com ?Animais noturnos?. Protagonizado por Amy Adams e Jake Gyllenhaal, o sofisticado thriller saiu do Festival de Veneza, em setembro, com o grande prêmio do júri, presidido pelo realizador britânico Sam Mendes. Desde então, o filme, que chega às salas brasileiras no fim deste mês, vem sendo apontado como potencial concorrente ao Oscar de 2017. Sim, é preciso ter muita intimidade com Tom Ford para nos dirigirmos a ele apenas pelo nome de batismo.

? Não estou tentando provar nada a ninguém. ?Animais noturnos? é apenas a confirmação de minha intenção de continuar a dirigir filmes, e com mais frequência. ?Direito de amar? até pode ter sido fruto de um capricho, mas foi a realização de um sonho muito antigo, que era fazer cinema ? admite o estilista e cineasta de 55 anos à Revista O GLOBO, durante um intervalo na concorrida agenda de promoção do filme e de sua nova coleção de outono, também lançada em setembro, em Nova York, entre os festivais de Veneza e Toronto (Canadá).

Adaptação do livro de Christopher Isherwood, sobre um professor gay atormentado pela perda do companheiro, em 1962, ?Direito de amar? foi a cartada mais arriscada de Ford após sua abrupta saída da direção artística da Gucci, em 2004. A ideia de retomar o desejo da juventude de fazer filmes ? o estilista chegou a estudar arte dramática e a fazer comerciais de TV, nos anos 1980 ? nasceu entre batalhas contra a depressão e os excessos com álcool. Mas só ganhou respaldo financeiro com o sucesso de sua própria linha de roupas, lançada em 2006, conquistado à base de ousadas campanhas publicitárias.

Sempre provocador, Ford apareceu naquele mesmo ano na capa de uma edição especial da revista ?Vanity Fair? ao lado das atrizes Scarlett Johansson e Keira Knightley ? ele completamente vestido, com a camisa do terno desabotoada; elas inteiramente nuas. A aproximação com Hollywood era óbvia: o estilista rapidamente conquistou uma clientela de estrelas do show business, que inclui, entre outros, Anne Hathaway, Johnny Depp, Ryan Gosling, Jennifer Lopez e Will Smith. O próprio Daniel Craig usou ternos assinados pelo estilista nos três últimos filmes da série James Bond.

Ainda assim, Ford enfrentou o ceticismo do mercado cinematográfico. Montou a própria produtora, a Fade to Black Productions, mas precisou investir dinheiro do próprio bolso para cobrir parte dos custos de ?Direito de amar?, orçado em cerca de US$ 7 milhões. O estilista chegou ao set só com o apurado senso de estilo, o olho para os detalhes e a experiência de mais de duas décadas no universo da moda, período em que teve a chance de trabalhar com os melhores fotógrafos do mundo, como Richard Avedon, Helmut Newton, Irvin Penn e Mario Testino.

? Pode parecer estranho, mas me sinto muito confortável num set de filmagem. Com a moda, aprendi a contar uma história, a enquadrar e iluminar uma cena. Num breve período da minha juventude, tive aulas de interpretação, elas me ajudaram a entender o processo do ator. Não significa que não preciso aprender mais nada. Parte da diversão de fazer filmes é aprender coisas novas ? diz Ford, a bordo do indefectível terno escuro, que não abandona nem no set. ? Uso sempre, até no set. Só os troquei por jeans e camisas nas sequências de ?Animais noturnos? que rodamos nas estradas do Texas.

?Direito de amar? foi um tiro no escuro, que acabou rendendo mais prestígio do que propriamente retorno financeiro. A repercussão positiva no circuito de festivais, nos círculos da crítica e na temporada de prêmios daquele ano, no entanto, abriram portas para o então cineasta estreante: ?Animais noturnos? contou com um orçamento bem mais generoso ? cerca de US$ 24 milhões ? e a parceria das experientes Focus Features e da Universal Pictures na produção e na distribuição. Há vários motivos ? todos bons ? para justificar os sete anos entre os dois filmes.

? Muitas coisas aconteceram desde ?Direito de amar?. A mais importante delas foi a chegada de Jack, que eu e o meu companheiro adotamos, e que hoje está com 4 anos de idade. Então, nos primeiros três anos de Jack conosco, a prioridade foi ele ? explica Ford, que há dois anos se casou oficialmente com o jornalista Richard Buckley, com que vive há mais de três décadas. ? Os negócios também se expandiram muito nos últimos tempos (a grife tem hoje 122 lojas e outlets). E, claro, demorei muito a encontrar uma história que quisesse contar em filme.

?Animais noturnos? é inspirado no romance ?Tony & Susan?, do nova-iorquino Austin Wright. É uma história de vingança centrada na figura de Susan Morrow (Amy), marchand de uma galeria de Los Angeles que vive um momento de turbulências no casamento e nos negócios. Ela começa a questionar o próprio estilo de vida ao ler o manuscrito de um novo livro enviado pelo ex-marido (Gyllenhaal), que descreve o ataque brutal à família de um professor universitário. A trama é contada em três níveis: no presente, na memória da protagonista e na leitura do livro.

Assim como ?Direito de amar?, o novo filme explora temas caros a Ford, como a incapacidade dos personagens de encontrar prazer nas coisas e nas pessoas à sua volta. A protagonista de ?Animais noturnos? é uma mulher bem-sucedida, que abandonou as aspirações da juventude, quando estudava para ser artista plástica, em troca da vida de conforto e de luxos.

Ela sabe que o atual marido (Armie Hammer), um rico empresário, a trai com outras mulheres, mas não o confronta em nome das aparências, do status quo.

? Prezo a fidelidade, as boas companhias. O livro de Wright fala sobre a necessidade de encontrarmos pessoas que sejam importantes para nós, e saber mantê-las ao nosso lado para o resto da vida ? afirma ele, que acrescentou à trama toques de crítica ao consumismo exacerbado. ? A história se passa nos anos 1990, quando o livro foi publicado. O que fiz foi trazê-la para a cultura contemporânea, em que as pessoas estão acostumadas a descartar coisas e relacionamentos. Acho importante contribuir com algo pessoal. Com o próprio personagem do Jake diz, ?os escritores não escrevem sobre outras pessoas, mas sobre eles mesmos?.

Pode parecer irônico que Ford queira criticar a sociedade de consumo, aquela mesma que a tornou um milionário. Mas ele mesmo enxerga traços de afinidade com Susan, mulher bonita, rica e famosa que começa a questionar seu apego aos bens materiais.

? Tenho consciência de que faço parte dessa cultura consumista, e vivo em conflito. Por muito tempo me esforcei para ganhar dinheiro e manter um padrão de vida altíssimo. Achava que todo o esforço valeria a pena. Tive sorte de aprender que o que garante uma vida plena e feliz são as pessoas que escolhemos para fazer parte dela, e que consegui preservar ? reflete o diretor, dono de uma casa em Los Angeles desenhada pelo arquiteto Richard Neutra, outra em Londres e um rancho em Santa Fé, no Novo México.

A beleza está nos olhos de quem a vê, acredita o diretor. ?Animais noturnos? abre com uma provocadora sequência em que mulheres obesas nuas e seminuas dançam, em câmera lenta, enquanto uma chuva de purpurina cai sobre elas. Logo o espectador descobre que a montagem faz parte de uma nova instalação que Susan está prestes a inaugurar em sua galeria.

? A ideia era enfatizar o absurdo do mundo contemporâneo. Acabei me apaixonando por aquelas mulheres, belas e livres, porque não seguem convenções. Vivemos numa cultura que dita o que é belo, mas basta manter os olhos abertos para encontrarmos beleza em volta. Vejo beleza em coisas simples. Olhe para o céu, por exemplo. Acho muito bonito ? aconselha Ford, antes de ser arrastado por assessores para outro compromisso.