Cotidiano

'Restringir a alma de um país a uma secretaria é destrutivo', diz Fernanda Montenegro

RIO – Já é quase uma piada no meio artístico o fato de que volta e meia Fernanda Montenegro é convidada, oficialmente, a assumir o Ministério da Cultura. Uma amiga próxima da atriz bota mais graça na história: “De quatro em quatro anos ela é chamada. Acho que pensam: ‘Vai que um dia ela aceita’”. Do alto de seus 87 anos, 70 deles dedicados à cultura, ela já recusou propostas de José Sarney, nos anos 1980, e de Itamar Franco, nos anos 1990. Chegaram os anos 2000, o governo interino de Michel Temer, o fim do MinC e a criação da Secretaria Nacional de Cultura, subordinada ao Ministério da Educação e Cultura e ocupada desde a última quarta-feira por Marcelo Calero. Fernanda é contra a mudança. Radicalmente.

— A Cultura é o caráter de um país, e restringir a alma de um país a uma secretaria é uma visão destrutiva do que se possa ter como nacionalidade. O fato de a Cultura ter menor dotação orçamentária não diminui a importância dela quando é traída — ressalta a atriz, que tem em sua história profissional 70 peças, mais de 30 programas na TV e uma indicação ao Oscar de melhor atriz por sua atuação no filme “Central do Brasil’’ (1998), de Walter Salles.

Fernanda tem uma visão construtiva sobre as manifestações e os protestos contra o fim do MinC — dos quais fazem parte diversos artistas —, que hoje movem ocupações de diversos equipamentos culturais públicos pelo país:

— Há algo positivo nos protestos e nas manifestações. É a sociedade que está agindo. Pode não haver um comando geral, mas estamos falando, nos posicionando. Mesmo que alguns radicalizem. É complicado? É. É perturbador? É. Mas é um corpo muito vivo. Um fenômeno carnificado. O que está acontecendo agora é a mais vibrante contestação que vi nestes meus últimos anos — ressalta ela. — Penso se acabar com o Ministério da Cultura numa hora dessas não é querer solapar esse movimento das populações, que, queiram ou não, é uma atitude cultural.

A atriz não se furta ao que define como “atitude cultural’’. Tanto que nesta semana abraçou outra causa: a ocupação por alunos de escolas da rede estadual do Rio, fruto da crise no setor. Na tarde de ontem, os organizadores do movimento na escola de teatro Martins Pena, ocupada há dez dias, postaram nas redes sociais um bilhete de apoio enviado por Fernanda. Diz o texto: ‘‘Aos colegas presentes e futuros, aí vai uma primeira contribuição para sustentá-los um pouquinho na corajosa resistência por esta escola que faz parte do nosso orgulho de gente de teatro’’.

É que, para Fernanda Montenegro, educação e cultura são importantes, e até por isso não devem ser fundidas em um só ministério:

— É preciso entender que não há educação que se fixe sem a cultura. A educação é um esqueleto que para ficar de pé tem que ter a musculatura da cultura. É lamentável que o atual presidente interino tenha sido insensível a essa visão.