Cotidiano

Renata Piazzalunga, arquiteta: 'O mundo não precisa de mais mesas e cadeiras'

“Sou arquiteta de formação, fiz mestrado e doutorado na USP e pós-doutorado na London School of Economics. Segui carreira acadêmica até 2004, quando fundei o IPTI . Nossa proposta é transformar a pesquisa acadêmica em prestação de serviço para comunidades brasileiras.”

Conte algo que não sei.

A Ilha do Ferro é um povoado localizado em Alagoas, no município de Pão de Açúcar. É um paraíso perdido. Tem aproximadamente 300 famílias e não tem pousada, restaurante, nada. Turista não pode ir. Fica à beira do Rio São Francisco e é um dos lugares em que desenvolvemos esse projeto de artesanato. A comunidade é dividida: os homens fazem artesanato em madeira, e as mulheres, o bordado Boa Noite, uma técnica que só existe lá e que corre risco de extinção. É uma joia, uma preciosidade perdida.

Como é o bordado?

O Boa Noite provavelmente tem origem europeia, não se sabe muito bem como ele chegou lá. Fala-se que uma senhora de um povoado vizinho levou a técnica para a Ilha do Ferro. O bordado é feito contando as tramas do tecido, desfiando e rebordando, um trabalho altamente delicado e nobre. É um processo de desconstrução e reconstrução. É lindo. As peças são delicadíssimas.

Você leva designers renomados para trabalhar com artesãos de pequenas comunidades do Nordeste. Como é isso?

Esse processo se dá em uma série de etapas. Primeiramente, é feito um levantamento iconográfico para conhecer a fundo não só a comunidade como um todo, mas cada artesão individualmente. Com essas informações, conseguimos passar para os designers pontos fortes e o que precisa ser trabalhado em cada comunidade. Não adianta o designer mandar um projeto todo bonitinho se ele não é aplicável. Além disso, bordadeira e designer têm linguagens diferentes. Centímetro não é unidade de medida para elas, que adotam como base o número de tramas. Ter esse conhecimento, essa imersão, é extremamente importante para o sucesso do projeto.

Vocês desenvolvem produtos voltados para o mercado de luxo. Já aconteceu algum estranhamento?

O único produto que causou certo estranhamento entre os artesãos foi a coleção que fizemos com os irmãos Campana, uma linha de luminárias em que o bordado era a foto da própria bordadeira. Houve uma certa resistência no início, mas, no final, o episódio foi até muito bonito. Pessoas ques que passam a vida bordando e pouco se olham, se encontraram refletidas nos objetos que produzem.

Há cinco anos, você já dizia que, apesar da tecnologia, as pessoas voltariam a consumir artesanato e produções mais lentas. De onde veio a percepção?

Na correria do cotidiano e em meio a tanta tecnologia, cada vez temos menos tempo para manter contato direto com as pessoas com quem gostaríamos de estar. É natural que o ser humano sinta necessidade de se manifestar de formas mais pessoal e que queira transportar isso para os objetos. Daí o encantamento com um bordado em que se consegue ver o erro do ponto, onde o rigor da máquina não substituiu uma história, um propósito, o cheiro de uma comunidade. Isso se manifesta como valor. O mundo não precisa de mais cadeiras e mesas. A produção de um objeto só se justifica se nele você consegue identificar uma história.