Cotidiano

Programação cultural do governo federal na Olimpíada segue um mistério

Installazione Sicilia 2010.jpgRIO – Uma Olimpíada de promessas não cumpridas. Depois da despoluição da Baía de Guanabara e das lagoas da Barra e de Jacarepaguá, agora é a programação cultural dos Jogos a cargo do governo federal que não sairá totalmente do papel. No início de maio, o então ministro da Cultura Juca Ferreira apresentou as atrações com números superlativos: 2 mil espetáculos e atividades em mais de 80 locais de apresentação, com a participação de 10 mil artistas de todo o país, num investimento de R$ 85 milhões. Na época, não foram divulgados os nomes dos participantes, ficou dito apenas que já estavam em fase de contratação.

Passados dois meses e meio e a 14 dias da abertura do evento, as únicas atividades culturais confirmadas para os Jogos são de responsabilidade da prefeitura. No Boulevard Olímpico, na Zona Portuária, serão realizados mais de 80 shows gratuitos. A posse do presidente interino Michel Temer, o fim do Ministério da Cultura (MinC), o seu posterior retorno e a posse de uma nova gestão, de Marcelo Calero, tumultuaram o andamento das negociações, segundo produtores ouvidos pelo GLOBO. E as informações de cancelamentos se multiplicam.

Procurado, o MinC disse, em nota, que ?todas as atrações selecionadas para a programação cultural da Olimpíada por meio de editais estão inteiramente asseguradas?. Contudo, os projetos contratados por meio de inexigibilidade ?estão passando por adequações para que sejam respeitados os princípios da eficiência administrativa e dos gastos públicos. Não nos obrigaremos com acordos informais que, no início de maio, ainda careciam de procedimentos administrativos seguros e de solicitação de autorizações para que fossem efetivados?.

De acordo com o ministério, ?havia casos de artistas estrangeiros que iriam receber mais de R$ 500 mil para a realização de um único projeto e de duas iniciativas que juntas consumiriam quase 20% do valor total?. No entanto, o órgão não detalhou quais seriam esses projetos nem os recursos materiais e humanos envolvidos. Por outro lado, a gestão de Juca Ferreira defende que a verba federal estava garantida, o cronograma de contratações estava em dia e todas as informações relativas à documentação e desenho jurídico das contratações foram apresentadas em relatório de gestão preparado para que não houvesse descontinuidade.

imagem do pao de acucar - Yemanja e Poseidon.jpgEnquanto as gestões trocam acusações, quem paga a conta são os produtores que tinham sido convidados pelo curador José Mauro Gnaspini no início do ano para participar da programação e agora receberam e notícia de que seus projetos foram cancelados. No próximo fim de semana, um encontro mitológico entre Poseidon e Iemanjá aconteceria na Baía de Guanabara por meio de mega-projeções no Pão de Açúcar e em uma cortina de água de 30 metros de altura no mar, na abertura do Festival de Luzes. Há cerca de duas semanas, Alexis Anastasiou, autor da instalação e sócio da produtora Visual Farm, foi informado de que o festival foi cancelado.

E não foi o único. O italiano Giancarlo Neri remontaria sua instalação ?Bar Paris? na Praça Paris, na Glória. A obra foi exibida pela primeira vez na Sicília, em 2010. No Palácio do Catete, seria reencenada a peça ?O tiro que mudou a História?, de Aderbal Freire-Filho. Sucesso no início da década de 1990, o espetáculo encena os últimos momentos de Getúlio Vargas. Estavam previstas cem apresentações gratuitas ao longo de dois meses, de terça a domingo.

Para complicar a situação dos artistas, Gnaspini foi exonerado na quarta-feira passada do cargo de assessor da Autoridade Pública Olímpica (APO), de onde fazia a curadoria. Em nota, a APO informou que Gnaspini ?foi exonerado por não serem mais necessários seus serviços? e que os contratos com os artistas são feitos pelo Ministério da Cultura. A notícia do afastamento do curador já circulava entre produtores desde a semana passada, e o próprio Gnaspini enviou e-mails aos artistas convidados falando dos cancelamentos e da sua exoneração.

PRODUTORES RECLAMAM

Anastasiou conta que levou semanas para entregar a documentação e resolver pendências relacionadas ao Festival de Luzes. Quando estava tudo certo com a papelada, ele foi surpreendido pelo corte. O artista e produtor conta que gastou mais de R$ 120 mil em equipamentos, assumiu gastos de passagens e aluguel de apartamentos na cidade para ele e sua equipe, e agora deve ficar com o prejuízo. Ele diz que recusou outros trabalhos durante a Olimpíada por causa do convite de fazer o primeiro evento desse tipo no Rio. Seu objetivo era buscar patrocínios privados, após os Jogos, para torná-lo anual.

? Tínhamos previstas instalações de artistas em diversos pontos da cidade: Corte do Cantagalo, Pedra do Leme, Pão de Açúcar. A cortina d?água móvel ia acontecer em diferentes pontos da Baía de Guanabara. Fomos chamados no começo do ano para desenvolver esse trabalho ? diz Anastasiou. ? A instalação de abertura era minha, meu pai é grego, e eu sou brasileiro. Ia ser uma celebração do espírito olímpico. Seria o grande momento da minha carreira artística.

Ele disse que, após ser avisado por Gnaspini do cancelamento, procurou em vão conversar com alguém do MinC:

? Eles desapareceram. Em nenhum momento me chamaram para conversar, cortar custos. Essa decisão coloca uma série de produtores culturais em situação complicada num momento de crise no país.

91-25069-04.jpgSituação parecida a enfrentada por Antonio Carlos Bernardes, diretor de produção da peça ?O tiro que mudou a História?. Convidado por Gnaspini para reencenar o espetáculo, Bernardes já tinha enviado toda a documentação para contratação e recebeu a notícia do cancelamento no fim de semana passado. A previsão de estreia era agosto, mas, devido à demora na confirmação, já estudavam adiá-la. Apesar dos 25 atores do elenco, o custo total não chegava a R$ 500 mil.

? O nosso contato era o José Mauro (Gnaspini). A última informação que eu tinha era que o nosso processo era um dos mais adiantados e que tínhamos que aguardar. A previsão era fazer cem apresentações, porque poucas pessoas podem ver por vez, já que se passa num prédio histórico. Tínhamos até fechado com uma empresa para fazer as reservas via internet ? afirma Bernardes.

O artista italiano Giancarlo Neri critica a ?situação kafkiana?. Todo o trabalho de pesquisa de materiais, orçamento, projetos técnicos, mão de obra, transporte e até o aluguel de um galpão na Avenida Brasil foi por água abaixo. Ele diz que os problemas começaram com a extinção do MinC.

? É um desrespeito não só com os artistas, mas com toda a minha equipe. Todos deixaram de aceitar outros trabalhos. Ficaram presos, essa é a palavra ? diz Neri, que não desistiu de trazer a instalação ao país. ? Os últimos dias foram feios para mim e para os outros envolvidos. Mas hoje (quinta-feira) decidi tentar fazer o projeto ?Bar Paris? no Rio em 2017, sem Olimpíada. Acho que o projeto merece ser visto e que o público da cidade gostaria de vê-lo.

A interrogação paira sobre outras atrações. A Lapa concentraria boa parte da programação com dois palcos, um montado junto aos Arcos e outro na Fundição Progresso. Questionado, o MinC não confirmou as atividades que ocorreriam no local. Outras atividades anunciadas e não confirmadas são: Festival das Culturas Indígenas, Festival de Cultura Popular, Festas de Rua e Carnavais do Brasil. Certa mesmo apenas a programação dos museus federais. O Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) vai homenagear a França, e o Museu Histórico Nacional vai trazer a cultura mexicana para a cidade.