Cotidiano

Polêmica sobre animais e editais raros são empecilhos para a arte circense

RIO – A chimpanzé Nina tinha 35 anos, uma vida quase toda passada na estrada com a trupe do Circo Stankowich, o mais antigo do país em atividade. Nina não estava sozinha: junto a mais de 150 funcionários, entre eles biólogos e veterinários, o Stankowich mantinha elefantes, tigres, ursos, cavalos, um verdadeiro zoológico ambulante para seguir a tradição. Seu patriarca no Brasil foi Pedro Stankowich, um romeno que chegou ao país em 1856, trazendo seus animais amestrados.

Há seis anos, porém, a família Stankowich teve que abrir mão de Nina e dos outros bichos, por pressão de organizações e pela aprovação de leis que proíbem a participação de animais em circo. Nina foi deixada no Zoológico de Pomerode, em Santa Catarina. Links circo

? Em 2011, houve uma enchente em Santa Catarina, e a Nina morreu afogada no zoológico. Eu fico emocionado em lembrar. Para todos os circenses, os animais eram parte da família ? diz Marcio Stankowich, um dos irmãos que administra o circo da família. ? Não tínhamos como brigar, em todas as cidades éramos recebidos por protestos de ONGs. A gente vive de levar alegria, não de polêmicas.

Na última década, a proibição dos animais foi um baque grande na atividade circense em todo o país. O tema é polêmico, e ainda não há uma lei vedando a participação em âmbito federal: um projeto foi apresentado em 2003 pelo senador Alvaro Dias (PV), regulamento a presença dos bichos, mas acabou modificado em discussões no Congresso para a exclusão completa de todas as espécies, exceto o ser humano ? ainda não há data para sua votação em plenário. O que há hoje são leis municipais e estaduais, a grande maioria pela proibição.

35284368_BX Rio de Janeiro RJ 28-10-2011 Orlando Orfei_ Foto DivulgaÔøaÔøao.jpgPara os circenses, as novas regras trouxeram dificuldades financeiras. Numa arte que vive quase exclusivamente da bilheteria, com raros apoios de editais públicos, muitas trupes ? como a de Orlando Orfei (1920-2015), dono de um picadeiro famoso no Rio dos anos 1970 ? tinham seu maior atrativo nos animais.

? Sofremos perseguição por causa dos animais. Fez-se uma campanha terrível, como se todos maltratassem os bichos ? afirma Edlamar Zanchettini, administradora do Circo Zanchettini, fundado por seus avós no Paraná. ? Entramos com uma ação na Justiça e pelo menos conseguimos o direito de manter os animais, mas eles não podem se apresentar. É por isso que a gente vê circos abrindo espaço para shows de ?Frozen? e coisas que nada têm a ver com a arte circense.

As críticas à presença dos animais se intensificaram na virada dos anos 2000 devido a denúncias de maus-tratos. Por outro lado, os circenses sempre questionaram o que chamam de preconceito contra seu ofício, apontando que animais são utilizados em programas de TV, jóqueis-clubes, rodeios e operações policiais.

? Eu fui criada com bichos, eles sempre foram bem tratados, mas para tudo tem seu tempo ? afirma Delisier Rethy, acrobata de 78 anos, que nasceu em picadeiro e hoje é professora da Escola Nacional de Circo, no Rio. ? Acho justa a proibição. Os animais deveriam voltar para o lugar deles. Nem no zoológico deveria haver.

LEIS DE INCENTIVO LONGE DO PICADEIRO

A disputa entre defensores e detratores da presença de animais acabou dando visibilidade a outros problemas dos circos. No interior, muitos deles ainda conseguem garantir público suficiente para se sustentar, mas manter a estrutura de um picadeiro é caríssimo ? mais caro ainda com os bichos. Um circo grande como o Stankowich, que possui duas unidades com cerca de dez caminhões cada, tem gasto fixo de ao menos R$ 120 mil por mês. Para se instalar numa cidade, com aluguel de terreno, transporte, luz, esgoto e água e mais anúncios para chamar o público, são necessários mais R$ 150 mil.

Outra dificuldade é lidar com a falta de conhecimento sobre os direitos dos circenses. Há leis que obrigam escolas públicas a aceitarem os filhos de artistas itinerantes em qualquer momento do ano, mas nem sempre são respeitadas. O mesmo acontece no acesso a postos de saúde.

? Os meus filhos mudam de escola uma vez por mês. É o tempo que a gente fica numa cidade ? conta Cesar Guimarães, responsável pelo Circo Fiesta, baseado em São Paulo. ? Mas a gente precisa brigar para as crianças serem aceitas, temos que levar a lei impressa nas secretarias de Educação. Os diretores das escolas acham que a gente está pedindo favor.

Cesar é, também, presidente da Cooperativa Brasileira de Circo, que tem 640 associados. A maior negociação com gestores públicos passa pela criação e manutenção de editais de apoio. Rio e São Paulo têm os seus, mas o mais reconhecido desses é o Prêmio Carequinha, administrado pela Funarte, que abriu linhas pela última vez em 2015, com R$ 6 milhões para trocas de lonas e desenvolvimento de espetáculos. Houve atraso, mas a instituição garante que o valor foi pago em 2016.

As leis de incentivo também parecem distantes da arte circense. Em 2016 foram apresentados à Lei Rouanet apenas 35 projetos de circo ? de teatro foram, por exemplo, 1.057; de dança, 340; e de exposições de arte, 296.

? A gente tem conseguido que outros editais, como o de iluminação para espetáculos e de residência artística, também abracem o circo. Mas ainda é pouco. Os circos se mantêm mesmo pela bilheteria ? diz Marcos Teixeira Campos, coordenador de Circo da Funarte. ? Temos um plano de fazer um levantamento do número de circos no Brasil. Ninguém sabe quantos são, eles fecham e abrem a todo momento. Quando cheguei à Coordenação de Circo, em 2005, falavam que era entre 500 e 2.500. Parecia piada.