Cotidiano

Poeta Carlos Nejar resgata a memória do Rio Doce em versos

O Rio Doce é um herói e foi morto em uma guerra de poder. A reflexão é do poeta Carlos Nejar, integrante da Academia Brasileira de Letras, que decidiu dedicar seus versos às águas sem vida que cortam Minas Gerais e o Espírito Santo. No livro ?A vida de um Rio Morto ? Monumento ao Rio Doce?, que será lançado hoje às 19h, na Livraria da Travessa do Shopping Leblon, o escritor resgata a memória do ecossistema dizimado pela lama tóxica que escoou da barragem da Samarco na cidade de Mariana (MG), e critica o contexto político-social brasileiro, segundo ele, repleto de corrupção que faz com que todo o país esteja imerso no ?barro?. O autor revela que decidiu construir com palavras um ?monumento? em memória do rio, para impedir que o desastre ambiental caia no esquecimento.

? Meu monumento não é de pedra, é de palavra. Eu não aceito a morte de um rio por causa da indústria, por causa da cobiça dos homens. Como não aceito que o Brasil esteja invadido de barro por causa da cobiça dos políticos. É um monumento-denúncia. Falam tanto de meio ambiente e estão esquecendo a maior tragédia ambiental do país ? afirma Nejar, defendendo ainda que é necessário rever prioridades: ? O futuro da Humanidade vai ser a água. A água vai valer mais que ouro, mais que petróleo. Nossa sobrevivência está na água, somos água. Se matamos os rios, matamos o homem.

Durante três meses, Nejar escreveu o poema épico que ocupa mais de 150 páginas e que, diz ele, surgiu de uma inquietação causada pelas 19 vidas perdidas na tragédia, o martírio da fauna local e a destruição do sustento da população do entorno do rio.

? O ambiente foi devastado pela Samarco. Até o mar ficou cheio de lama. O povo ficou sem água, os animais foram mortos, os pescadores sem motivo nenhum para viver e o turismo, destruído.

Morador de Vitória (ES), Nejar acompanhou de perto a degradação promovida pelo rompimento da barragem em Mariana, o que serviu de base para a escrita do livro. Nesse sentido, as vozes silenciadas das pessoas atingidas pelo desastre também o incentivaram a tratar do tema.

? Conheço a região do Espírito Santo e gosto dela. Foi uma terra que me acolheu, embora eu seja gaúcho. Precisamos estar conscientes do que está acontecendo nesse rio. Esse livro é uma maneira não só de protestar, mas de deixar respirar o pensamento coletivo. O poeta é uma antena coletiva. Há muitos que calaram, precisamos dar voz a tudo isso ? argumenta.

?O PODER É ABUSIVO?

Os versos ?Eu fui chamado Rio Doce/ E conto: virei defunto? abrem o poema que, mais adiante, ?conversa? com a obra de outros escritores, como João Cabral de Melo Neto, e menciona outros rios, como o Capibaribe, em Pernambuco. Ao longo do texto, o autor também aproveita para fazer uma crítica ao contexto político e social do país. A seu ver, o Rio Doce é uma metáfora do Brasil: um lugar repleto de riquezas, invadido e morto pela sujeira originada dos interesses econômicos alheios e pela corrupção.

No trecho em que aborda o ?governo da República?, Nejar fala a respeito das deficiências dos serviços públicos, dando a dimensão da ?lama? que atinge não só o Rio Doce, mas todo território nacional:

?Pois a cultura é canhota/ E, nem assim mesmo, escreve.? diz o texto, criticando ainda outras áreas:

?A educação perneta,/ A saúde anda de costas,/ Pois o imposto não volta,/ E mais é exigido. Crosta?

? O poder é abusivo, não tem olhos, não tem percepção. O poder não tem sensibilidade, quer sempre mais. O povo está sendo esmagado, mas nós vamos continuar falando disso ? protesta o poeta que, no livro, ainda denuncia a mineradora Samarco: ?Matas o que te sustenta,/ Matas o que te enriquece.?

Apesar do cenário triste que perpassa a obra, Nejar traz em si um alento:

? Tenho esperança que o rio volte a viver. O homem pode refazer o que estragou.