Cotidiano

Peça ?Orfeu? fez de Tom e Vinicius uma dupla

2000-012596-_20000503.jpgRIO ? Há 60 anos ? 25 de setembro de 1956 ? ?Orfeu da Conceição? estreava no Teatro Municipal do Rio. Classificado como ?tragédia carioca em três atos?, era um musical baseado na mitologia grega. Por isso e muito mais, subia ao palco antecedido por alguma curiosidade e muitas dúvidas.

Daria certo um musical sobre o mito de Orfeu transferido para os morros da cidade? E com um elenco só de negros? E com texto do poeta e diplomata Vinicius de Moraes, que, até onde se sabia, não tinha qualquer intimidade com o samba? E o que dizer da música entregue ao jovem e inexperiente Antônio Carlos Jobim, compositor de sofisticados sambas-canções tão diferentes dos que o morro cantava?

Em síntese, dúvidas quanto às possibilidades de êxito de uma tragédia em ritmo de samba. Tarefa tão difícil que Vadico ? o parceiro mais importante de Noel Rosa e o primeiro a ser convidado por Vinicius para musicar seus versos ? não se julgou capaz, mesmo com sua experiência de Broadway como músico da companhia negra de Katherine Dunham. Fato é que, como diria o poeta, ?Vadico tirou o corpo fora?.

?Orfeu da Conceição? era projeto antigo. No princípio, um roteiro cinematográfico para Sacha Gordine, elaborado enquanto Vinicius servia como segundo secretário da embaixada em Paris. O texto ganharia, em 1954, o primeiro prêmio no concurso de teatro do IV Centenário da Cidade de São Paulo. E foi como teatro que ganhou vida, já que o custo da produção de um filme estava longe do que o prestígio de Vinicius podia levantar. Prestígio suficiente, porém, para ter a colaboração de amigos como Oscar Niemeyer (cenário em espiral simbolizando o Morro e o Inferno), Carlos Scliar e Djanira (cartazes), Abdias do Nascimento (produção do Teatro Experimental do Negro), mais os figurinos criados por Lila Bôscoli, mulher de Vinicius.

E Orfeu, quem seria? Quando ainda em Paris, Vinicius recebeu na embaixada a visita de Haroldo Costa e sua Brasiliana, companhia há quatro anos na Europa, divulgando por 25 países a música e outros bens da cultura brasileira. Estavam ali na tentativa de fazer, pelos canais diplomáticos, com que a prefeitura de Paris não cobrasse certas taxas que encareciam o ingresso do seu espetáculo. Vinicius o conseguiu. E foram todos comemorar com uma feijoada na qual Haroldo Costa, bonito, elegante, boa voz, presença de palco e, além de tudo, sambista, se mostrava exatamente o Orfeu que Vinicius queria.

? Já no Rio, durante a escolha do elenco ? lembra Haroldo ?, eu disse a Vinicius que queria fazer teste para o papel. Afinal, o diretor, Leo Jusi, podia já ter em mente outro Orfeu. Vinicius concordou, fiz o teste e acabei escolhido pelos dois.

Os demais papéis de destaque foram de Daisy Paiva, filha do maestro Vicente Paiva (Eurídice), Ciro Monteiro (Apolo), Zeni Pereira (Clio), Lea Garcia (Mira), Abdias do Nascimento (Aristeu) e Valdir Maia (o Corifeu que abria a ação dizendo novo soneto de Vinicius: ?São demais os perigos desta vida/ Para quem tem paixão, principalmente…?). As orquestrações eram do próprio Jobim; o violão de Orfeu, de Luiz Bonfá; e a regência da orquestra, de Leo Peracchi.

FILME DESAGRADOU VINICIUS

A noite de estreia, uma terça, foi o acontecimento dos primeiros dias da primavera de 1956. Teatro lotado e gente famosa aplaudindo: Niemeyer e Santa Rosa, Manuel Bandeira e Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto e Antônio Maria, Eneida e Aníbal Machado, Lúcio Rangel e Guilherme Figueiredo, Marta Rocha e o prefeito Negrão de Lima. Num dos camarotes, Susana de Moraes, a filha a quem Vinicius dedicara tanto sua valsa ?Eurídice? como o próprio musical.

Nem Haroldo, nem Vinicius, ou qualquer dos envolvidos na produção podia imaginar a importância que ?Orfeu da Conceição? teria. Não como sucesso, que até não foi tanto (seis noites no Municipal, mais um mês no João Caetano). Mas por outras razões: ter dado à música uma nova joia, ?Se todos fossem iguais a você? (cantado, como os outros sambas da peça, por Orfeu e coro); por ter feito de Tom & Vinicius uma nova dupla, a mais ilustre daquela geração; por contribuir para que o poeta abraçasse de vez a música popular; e por ter servido de inspiração para discos, filmes e outras experiências teatrais.

Em 1958, o primeiro filme, dirigido pelo francês Marcel Camus, chegou às telas. Lotou cinemas, ganhou Oscar, mas não agradou a Vinicius. A trilha não usava as canções que ele e Jobim tinham escrito para o teatro, tampouco sua valsa ?Eurídice?, que ele considerava obrigatória (em lugar delas, ?A felicidade? e ?O nosso amor?, nenhuma das duas alcançando a glória de ?Manhã de carnaval?, de Luiz Bonfá e Antonio Maria). Vinicius também não gostou de ver seu morro convertido em carnaval para turista. Muito menos de ver seu Orfeu virar Orphée Noir ou Black Orpheus, na pele de um jogador de futebol, sem a alma de sambista de Haroldo.