Cotidiano

Passagens aéreas que valem vidas

Os membros da ONU, reunidos em Nova York no mês passado, assumiram o compromisso de acabar com a Aids até 2030. Para atingir esse objetivo, é preciso grande esforço mundial, envolvendo entidades locais, nacionais e internacionais, entre elas organizações internacionais como a Unitaid, ainda pouco conhecida dos brasileiros. A entidade é, porém, reconhecida pela ajuda que presta, particularmente na África, onde essas epidemias causam sérios danos ao tecido social. Este ano, a Unitaid completa dez anos. Instalada em Genebra, é a mais jovem organização no sistema das Nações Unidas.

O Brasil presta apoio à organização desde sua concepção. Junto com a França, nosso país foi seu idealizador e cofundador. Foi lançada na Assembleia Geral da ONU de 2006, já com amplo apoio internacional, incluindo Chile, Noruega e Reino Unido. De seu sistema de governança participam também a Coreia do Sul, Espanha, União Africana, representantes da sociedade civil e do setor privado, como a Fundação Gates e a Organização Mundial de Saúde.

Desde sua criação, o Brasil vem atuando como membro do Conselho Executivo e por meio do financiamento de suas operações. Nos seus primeiros quatro anos, a secretaria da Unitaid foi chefiada pelo doutor Jorge Bermudez, especialista brasileiro em medicamentos, atualmente na Fiocruz.

Em 23 de junho, o Conselho Executivo da Unitaid, em Genebra, elegeu o ex-ministro Celso Amorim como seu presidente. A nomeação do embaixador Amorim é significativa pois, quando chanceler, teve importante papel na concepção da organização junto ao seu par francês. Em sua gestão no Itamaraty, ele incentivou a cooperação entre o Brasil e a África e com outras regiões em desenvolvimento, na área de saúde pública. Agora sucede a presidência francesa, que liderou a Unitaid nos seus primeiros dez anos.

A organização depende de uma fonte inovadora de financiamento, a ?taxa de solidariedade?, que é uma pequena contribuição cobrada de passageiros de companhias aéreas para desenvolver, de maneira responsável, o mercado internacional de medicamentos, diagnósticos e outros produtos necessários para enfrentar epidemias de HIV, tuberculose e malária nos países em desenvolvimento.

A França tem sido a sua principal financiadora: cada passageiro que embarca nos aeroportos franceses, tanto em voos domésticos como em voos internacionais, contribui com cerca de 2 a 40 euros. O governo brasileiro optou por sistema um pouco diferente, comprometendo-se a contribuir com recursos do Orçamento da União correspondentes a US$ 2 por passageiro que embarca rumo ao exterior.

A atuação da Unitaid favorece, sobretudo, os países de baixa renda e com maior necessidade de apoio internacional, particularmente na África Subsaariana. Torna possível antecipar o acesso a tratamentos e testes de diagnósticos mais avançados, normalmente disponíveis apenas em países desenvolvidos, que demorariam meses ou anos para chegar aos países do sul, em razão do seu altíssimo custo. Com a ?taxa de solidariedade?, a Unitaid pode atuar nos mercados de medicamentos, promover o desenvolvimento e acesso a esses tratamentos e fazer com que cheguem mais rapidamente às pessoas mais pobres, contribuindo, assim, para melhorar as políticas de saúde pública relativas a essas três doenças.

Considerando o objetivo da ONU de acabar com a Aids até 2030, o embaixador Amorim terá, nos próximos anos, o desafio de garantir a vanguarda da Unitaid na resposta à epidemia, influindo sobre o mercado de medicamentos e, ao mesmo tempo, assegurando a contribuição financeira dos países membros, em particular a da França, principal fonte de recursos, e do Brasil, que enfrenta rigoroso ajuste fiscal. Tal ajuste, no entanto, não deve ser motivo para se esquivar dos compromissos com uma organização cujo trabalho tem salvo centenas de milhares de vidas. Esses recursos, utilizados com eficiência e celeridade, são necessários para a luta contra a Aids, tuberculose e malária.

Paulo Meireles é médico e foi gerente de projetos da Unitaid