Cotidiano

O sonho de nossa infância

Mal sabia articular a palavra, mas respondia orgulhosa o que seria  quandofosse grande: médica de cachorro. Resposta simples e curta para dizer que eu seria veteri..vitina…vetira…aquela coisa lá de cuidar de bicho. Mas não era qualquer bicho: era cachorro. E todos achavam muito natural. Qual menininha não gostava de cachorros? Mas eu falava sério. Queria ser médica de cachorro. E ponto. Não me venham com sugestões. E elas não vinham. Na verdade perguntavam por perguntar, ninguém estava muito interessado no papo de uma garotinha que se quer sabia escrever.

O tempo foi passando, passando e eu aprendi a dizer o nome do que seria. Veterinária, sacou? Pois é. Vou cuidar dos cachorros. Tá, coloca o gato junto que também é filho de Deus. E Hamnster. Quem sabe um cavalo? Não, muito grande. E para a surpresa de todos, nunca pensei em outra coisa que não fosse trabalhar com animais, para a inveja dos meus colegas que faziam testes e mais testes vocacionais.

 – Quem sabe medicina?

 – Não.

– Jornalismo, você leva jeito!

 – Não.

 – Psicologia?

Não. Embora enlouquecida pela disciplina de História, nem os deuses gregos tiveram o poder de me demover da grande causa que me trouxera ao mundo: cuidar dos cães.

E a vida continuou passando. Me diplomei. Trabalhei com milhares de animais. Salvei alguns, tropecei em outros, mas sempre com a mais nobre intenção de ajudar. Só não contava com as questões administrativas. Ter uma clínica veterinária, acredite, é cansativo. A começar pelos plantões e o medo de assaltos. E nem todo empregado está engajado em sua causa de salvar e fazer sorrir. Mesmo assim tem que pagar férias, décimo terceiro, fundo de garantia e aguentar atestado médico para qualquer espirro. Bancos, fornecedores, cheques clonados.E impostos. Vários deles. Para quem queria cuidar de animais, tive de cuidar de um universo para o qual não tinha a menor paciência, muito menos vocação. Sim, lidava com aquilo que mais me deixava feliz, animais, mas eles não vinham sozinhos. Tinham donos. Alguns se tornariam meus melhores amigos; outros quem dera poder dizer “dê meia volta, por gentileza, e vaze daqui!” Tem gente que tem cachorro pra bonito e se quer gosta de animal.

Cheguei onde sempre sonhei e fiz aquilo que eu havia focado. Só esqueci de olhar para os lados. E o que estava escondido no exercício da profissão sugou minhas energias.

Um dia olhei para trás. O que seria se não fosse veterinária? Jornalista. Afinal, tinha talento. Mas dessa vez olhei para os lados, para as redações, prazos, editor-chefe, entrevistado enrolando até não puder mais dizendo não saber nada da culpa que diziam ter.  Voltar a estudar depois dos 30 foi uma das experiências mais incríveis e restauradoras que já tive. Porque a vida é assim: se modifica, se aprimora, se complementa. Veterinária jornalista? Pois é, gostei. E deu certo. Dentista publicitário, engenheiro historiador, psicóloga advogada e tantos outros profissionais híbridos que estão por aí não erraram no primeiro vestibular. O sonho de nossa infância chegou ao fim e tivemos a feliz oportunidade de seguir novos desafios.