Cotidiano

Mário Lúcio Sousa, escritor e músico: ?Cultura é o que diferencia humanos de bestas?

201610111533426881.jpg?Tenho 52 anos e nasci em Tarrafal, na Ilha de Santiago, parte do arquipélago de Cabo Verde. Sou autor de livros de prosa, poesia e teatro, multi-instrumentista e compositor. Gravei com Milton Nascimento, Paulinho da Viola e Gilberto Gil . Em 2011, assumi o cargo de ministro da Cultura de meu país, que exerci até este ano.?

Conte algo que não sei.

Se não fosse Cabo Verde, não existiria o Jardim Botânico do Rio. Meu país serviu como um laboratório até o século XVIII, por seu clima ameno e sua localização. Quando queriam trazer plantas da Europa para o Brasil, a espécie ficava seis anos em Cabo Verde, até se adaptar e criar um tipo de planta tropical. Acontecia o mesmo com os animais, que não podiam vir direto para a América ou para a África, senão morriam. Também acontecia no sentido contrário: vegetais e animais do Brasil passaram por Cabo Verde para ir para a Europa.

O que fez como ministro?

Muitas coisas, mas, entre elas, criamos a Orquestra Nacional de Cabo Verde, o Balé Nacional, o Teatro Nacional, a Galeria Nacional de Arte. A galeria gere todo o acervo do Estado e expõe em todas as ilhas, para o povo usufruir. Das coisas que ficaram, porque tudo isso foi destruído, a mais inovadora foi a criação do Banco da Cultura. É uma instituição que capta fundos do Estado e dos mecenas e financia a cultura.

Como isso foi destruído?

Quando outro partido ganhou as eleições, este ano, o novo ministro entendeu que essas coisas não eram úteis, e acabou com a orquestra, com o balé, com a galeria, com o teatro… Quando aprendermos a valorizar a continuidade, como se a vida fosse uma espiral, veremos que cada sucessor é uma estafeta do outro. Recebe um canudo do que vem antes dele e o leva mais longe. Mas, em vários países do mundo, o sucessor se torna adversário do antecessor.

No Brasil, houve controvérsia recente em torno da extinção do Ministério da Cultura. O que isso significa?

É um símbolo muito bom de como o ser humano pode elevar-se à besta. A evolução tem vários caminhos: o bom evolui no caminho do bem, e aquele que tem ímpetos maus evolui para uma maldade muito severa. Há indivíduos que se materializam tanto que tudo que é simbólico e intangível se torna coisa volátil, sem importância, como a cultura. Quando se chega a esse nível é um nível de destruição da qualidade humana muito grande. Na verdade, os países podiam ter dois ministérios: o da Cultura e o dos Animais.

Como assim?

Cultura é o que diferencia os seres humanos das bestas. Então, não há nada que o humano faça, como ser social, que não tenha um cunho cultural. A cultura não deve ser vista somente como entretenimento, manifestação artística. É a forma de pensar, de ver o mundo, de se relacionar com Deus, com o Cosmos, com a Natureza, com o outro. Dentro da cultura há economia, turismo, saúde, educação. Em tudo que existe colocamos a cultura, porque damos o seu valor. Há culturas que usam plantas medicinais; outras, antibióticos químicos; outras que curam com rezas e com energias de mão e pensamento. Tudo isso setorizado, para melhor gestão, mas dentro da cultura. O que não cabe nesse ministério: os animais, e acho até que não os compreendemos muito bem, porque há animais mais cultos que certos homens.

Você veio falar de lugares de memória. Qual é o do seu país?

Para nós, é importante que a memória seja um estado permanente de presença. Devemos compreender a importância da memória, que é como se fosse o Big Bang do ser humano. É de lá que sai tudo que nos une hoje. Por mais distantes e antagônicas que sejam duas pessoas, elas são do mesmo lugar. Os lugares de memória nos aproximam, nos fazem ver que temos que construir um futuro conjunto.