Cotidiano

Joyce: 'Meu passado não me condena'

62744804_A cantora Joyce.jpgRIO – Os anos 1980 foram especialmente perversos para alguns artistas da chamada MPB.
Num tempo em que os produtores tiveram mais poder do que nunca ? e que a pressão
para vender discos era esmagadora ?, houve quem embarcasse sem olhar para trás
em gravações cheias de penduricalhos eletrônicos de modernidades efêmeras, com
sonoridade estéril. Esse não foi o caso de Joyce, cantora, violonista e
compositora que agora volta no tempo com a caixa ?Anos 80? (Discobertas),
reunindo as reedições em CD de seus LPs da década maldita: ?Feminina? (1980),
?Água e luz? (1981), ?Tardes cariocas? (1983) e ?Saudade do futuro? (1985).

? Meu passado não me condena! ? brinca (com bastante orgulho, é claro) a
artista, que estreara em LP solo em 1968, com texto de apresentação por Vinicius
de Moraes, mas que, até o começo dos 80, era mais consagrada como compositora,
apesar de discos em que emoldurava uma mistura de samba, jazz, folk e Clube da
Esquina com sua suave porém firme voz. ? Segui um caminho muito solitário e
alternativo.

Joyce chegou a ?Feminina? (lançado pela EMI Odeon) amadurecida, depois de
duas filhas, passagens pela Europa e músicas gravadas por Milton Nascimento,
Nana Caymmi e Boca Livre (?Mistérios?), Maria Bethânia (?Da cor brasileira?,
parceria com Ana Terra) e Elis Regina (?Essa mulher?). O disco, segundo ela, foi
seu momento de ?chegar e marcar território, de estar no controle do trabalho?. E
de impor a sua escrita feminina, ainda estranha para a MPB (?Diziam que era
imoral eu escrever letras como as que escrevia?, recorda-se).

?Feminina? foi, basicamente, o
registro, na voz de Joyce, das músicas gravadas pelos grandes intérpretes da
música brasileira. Entraram apenas duas inéditas: ?Clareana? (que faria muito
sucesso nas rádios depois de passar pelo festival MPB 80, antes de sair o LP ? o
que levou a EMI a antecipá-la em compacto) e ?Aldeia de Ogum?, faixa sem letra
em que ela se desdobra nas intervenções vocais, no violão e na viola de dez
cordas.

Curiosamente, nos anos 1990, ?Aldeia? foi a gravação que os DJs ingleses da
cena do Acid Jazz descobriram e tocaram à exaustão, abrindo os caminhos da
Europa para a cantora.

? Ninguém esperava que isso fosse acontecer! ? jura Joyce.

?Água e luz?, também lançado pela EMI, foi
uma espécie de reafirmação menos agressiva de ?Feminina?, com um sucesso
radiofônico (?Monsieur Binot?, em homenagem ao seu professor de ioga) e uma
música censurada (?Eternamente grávida?, que tem o verso subversivo ?parir, para
mim, é um prazer?). Mas o que a marcaria nesse LP foi o que aconteceu quando
descobriu que bases instrumentais de seus discos estavam sendo usadas, sem
crédito ou autorização, pela gravadora, num LP intitulado ?Grandes sucessos,
grandes mulheres?, de uma certa cantora Sonia Mello. Indignada, Joyce conseguiu,
em acordo, a suspensão da venda do disco.

?
Mas aí caí no SPC das majors ? ironiza ela, que, sem um canal de diálogo com as
grandes gravadoras, partiu para a produção independente com ?Tardes cariocas?,
um disco que não encontrou o caminho do rádio (apesar de faixas como ?National
Kid?, um dueto com o popularíssimo Ney Matogrosso) nem dos compradores (apesar
de o LP ter sido distribuído pela major PolyGram).

Mas entrou aí, novamente, a mão do
imponderável. Um lote do disco foi distribuído no Japão e encantou os
organizadores do festival Yamaha, que entraram em contato com a gravadora no
Brasil a fim de convidar Joyce para a competição. E ela só ficou sabendo do
convite porque uma secretária da gravadora a avisou. Faxes para lá e para cá, e
lá foi a cantora para a Terra do Sol Nascente:

? Sem querer, o disco me abriu uma
porta para o mercado internacional.

O LP seguinte de Joyce, ?Saudade do
futuro? (que, assim como ?Tardes cariocas?, nunca tinha sido editado em CD no
Brasil) nasceu de um convite do empresário José Maurício Machline, que então
lançava o selo Pointer. Ele também teve a sua dose de inesperado: a bossa ?Tema
para Jobim?, parceria com o saxofonista e gigante do jazz Gerry Mulligan (feita
nos anos 1970, quando a cantora o conheceu numa festa na Itália), foi parar nos
ouvidos de Robert Altman, que decidiu incluí-la na trilha do filme ?O jogador?
(1992).

No fim , foi mais um impulso para
a carreira internacional de Joyce, que, em julho, lançou no Japão o LP de
inéditas ?Palavra e som? (a edição brasileira sai no ano que vem, pela Biscoito
Fino).