Cotidiano

Herança colonial e identidade nas telas de Arjan Martins

RIO ? Em meados dos anos 1990, muitos alunos e professores do Parque comeram o pão que Arjan Martins amassou. Foi preparando e vendendo o alimento que ele frequentava as aulas da Escola de Artes Visuais.

? Não tinha formação artística anterior, mas era muito curioso para absorver aquela gama de informações que naquele momento, sem eu saber, estava me construindo e me ressignificando como pessoa ? conta.

?Com o lastro do Parque Lage? como suporte, retirou-se para o ateliê para ?cavar suas subjetividades?. Ali, o pintor buscou suas próprias origens para tratar, em telas e desenhos, de identidade, fronteiras e herança colonial. Sua trajetória pouco comum no cenário carioca incluiu uma individual numa grande instituição ? ?Américas?, no MAM, em 2014 ? dois anos antes de expor uma reunião de trabalhos numa galeria comercial. ?Etcetera?, inaugurada neste fim de semana na Gentil Carioca, sela este percurso.

As 21 telas inéditas começaram a ser concebidas numa residência artística em Londres, em 2015. O artista teve a oportunidade de visitar o navio-museu Cutty Sark, em Greenwich, a mais veloz embarcação de sua época, que levava ao país o chá cultivado na China. Era, portanto, um braço de sustentação da economia inglesa no período, amparada na exploração colonial.

ArjanMenina

Essas questões de domínio e espoliação estão presentes em grandes telas, onde se misturam outras referências. Arjan usa a foto de uma menina retratada por Sepp Werkmeister na capa do disco ?Girl talk?(1968), de Oscar Peterson, para produzir uma série de pequenas pinturas; um conjunto de fotografias adquiridas por ele num sebo, com mulheres negras em afazeres domésticos, provavelmente nos anos 1960, rendeu novos trabalhos. Quando expôs no MAM obras da mesma série, chamou-as de ?Ceci n?est pas Debret? ? alusão ao conjunto de desenhos nos quais o francês Jean-Baptiste Debret, no século XIX, registrou os costumes brasileiros, produzindo extensa iconografia da escravidão no país.

? A exposição foi surgindo a partir de um olhar no ateliê para todas essas imagens: a da menina, a de uma cena do filme ?Oliver Twist? (2005), de Roman Polanski, ou das senhoras com as bacias, trabalhando ? conta Arjan. ? Essas fotos me chamavam para a minha história, para a minha vida. A partir daí fui encontrando um caminho para que migrassem para os quadros.

Essa conjunção criou uma obra com forte identidade, ancorada em fatos que se refletem na atualidade. No texto da mostra, o historiador de arte e curador anglo-brasileiro Michel Asbury diz: ?Podemos nos perguntar quantos de nossos dirigentes políticos ou instituições aqui no Reino Unido, nos EUA ou no Brasil sustentam posições de poder baseadas em privilégios que remetem ao comércio de escravos e como esse privilégio ainda se legitima por meio de preconceito. Assim as pinturas de Arjan, mais do que qualquer fotografia, testemunham o perverso anacronismo da contemporaneidade?.

? O tráfico de cidadãos africanos para serem escravizados, a espoliação das riquezas, são coisas que me inquietam ? confirma Arjan. ? As estatísticas, o modo como essas pessoas chegaram aqui… como ilustrar isso de forma que não fosse pueril nem um pastiche? Como operar com esses dados? Sempre tive essa preocupação ? diz o artista.

Com a mostra de Arjan Martins, também foram lançados a Camisa Educação nº 69, de Beto Shwafaty (?Escola é fábrica?), e a Parede Gentil nº 27 (?Xô dor?, de Lenora de Barros). A primeira é a encomenda da galeria a um artista ou um coletivo, com o requisito de constar, na peça, a palavra educação. A segunda é uma obra pública na empena do prédio. A de Lenora mostra a artista segurando, em primeiro plano, um aerossol do tipo de matar insetos, com o mapa do Brasil como alvo.

?ETCETERA?

Onde: A Gentil Carioca ? Rua Gonçalves Lêdo 11 e 17, Centro (2222-1651).

Quando: Ter. a sex., das 12h às 19h; sáb, das 12h às 17h. Até 21/12.

Quanto: Grátis.

Classificação: Livre.