Cotidiano

Há espaço para ações pontuais na guerra contra o crack

Estudo de 2013 dos ministérios da Saúde e da Justiça indicava que o Brasil tinha, à época, somente nas capitais, 370 mil usuários de crack ou substâncias assemelhadas, o correspondente a 0,8% da população e a 35% dos consumidores de drogas ilícitas (excluída a maconha) dessas cidades. No mesmo ano, um relatório do escritório da ONU para a questão dos entorpecentes sinalizava que a curva de consumo de crack estava em alta aqui no país.

Tomados em conjunto, os dois indicadores evidenciam que a política brasileira para os entorpecentes permanece desmobilizada no front dessa guerra. Preso o país a conceitos ultrapassados, que privilegiam a abordagem policial em lugar de ações de redução de danos, nada indica que desde então o perfil da circulação e do consumo do crack, uma droga mortal, tenha melhorado.

A realidade da expansão das cracolândias e das vendas no mercado clandestino controlado pelo tráfico, assim como a degradação de outros indicadores de saúde e de criminalidade, indicam que, ao contrário, a situação tem se agravado. No estudo interministerial, há dados estarrecedores: por exemplo, 40% dos usuários vivem nas ruas, 30% das consumidoras já fizeram sexo para obter a droga (10% das que foram ouvidas estavam grávidas), entre os consumidores a incidência de HIV é oito vezes maior que em outros grupos de risco etc. São números de flagelo social.

Reverter esse quadro passa por uma profunda alteração na maneira como o país encara o problema, implicando mudanças, concretas e/ou culturais, no âmbito da filosofia do combate às drogas, da legislação e da relação das instituições com o problema. Mas esperar que a questão seja abordada somente em sua totalidade é um convite ao imobilismo; há, certamente, espaço no país para a implementação de políticas que se antecipem a viradas de fundo mais estratégico.

Em São Paulo, por exemplo, é positiva a experiência de tratar o flagelo com ações de redução de danos. Com o programa De Braços Abertos, a prefeitura da capital paulista atende 467 usuários de crack, oferecendo-lhes acolhimento, três refeições diárias e trabalho. Uma porta para um caminho opcional àquele que, em geral, espera os que são dominados pelo vício sem qualquer assistência ? a morte ou a vida com sequelas.

O que se fez em São Paulo foi reproduzir na cidade modelos já adotados, com bons resultados, em outros países no combate às mazelas das drogas em geral. Neles, troca-se o protocolo ? em lugar da ortodoxia de prender indistintamente usuários e traficantes, uma visão que até mesmo a ONU está revendo, trata-se a questão dos entorpecentes com uma abordagem de saúde pública, com assistência aos consumidores, e reserva-se a prisão para os traficantes.

Mudanças generalizadas são imperiosas, inadiáveis mesmo. Mas há caminhos possíveis no âmbito de ações pontuais que contribuem para melhorar o perfil de uma guerra em que a sociedade ainda está sendo derrotada.