Cotidiano

Drama sobre a escravidão americana é aclamado em Toronto

2016 937635831-201609092139319087_RTS.jpg_20160909.jpgTORONTO ? Diretor e elenco repetiram a mesma frase seguidas vezes durante a coletiva de imprensa de mais de uma hora sobre o filme mais aguardado do Festival Internacional de Cinema de Toronto: ?The birth of a nation? não é um filme, é um movimento.

A enorme ambição da produção já é explicitada no título do, bem, filme, que bateu o recorde de aquisição de projeto independente por um grande estúdio no início deste ano após a exibição no Festival de Sundance. É o mesmo título do clássico de 1915 de D. W. Griffith (1875-1948), o primeiro longa-metragem americano mostrado na Casa Branca, ao mesmo tempo reverenciado por suas inovações técnicas e de narrativa, mas condenado por ser uma peça de propaganda de defensores da supremacia ariana nos EUA, inspirador da reinvenção da Ku Kux Klan na primeira metade do século XX.

Dirigido por Nate Parker, de 36 anos, o novo ?The birth of a nation?, que estreia nos cinemas brasileiros em janeiro, é centrado na história real de Nat Turner (vivido pelo próprio diretor), líder de uma revolta fracassada de escravos na Virgínia em que 60 latifundiários e suas famílias foram mortos três décadas antes da Guerra Civil Americana (1861-1865) e do fim da escravidão nos EUA. O filme recebeu até o momento a maior ovação em sessões de gala em Toronto, com aplausos de pé durante mais de dois minutos.

? Escolhi o título antes mesmo de ter o roteiro pronto. Queria que meus filhos e netos, quando entrassem no Google e pesquisassem o nome do filme, encontrassem uma outra história. Não estou fazendo revisionismo histórico, mas ampliando a narrativa de formação dos EUA, discutindo nossa identidade ? disse Parker.

O diretor de primeira viagem se distanciou de filmes lançados recentemente em torno da escravidão nos EUA ao se deter em uma narrativa mais tradicional e de valorizar o aspecto religioso do lento processo de derrocada do sistema escravagista no país. O tema é especialmente pertinente por conta dos seguidos casos registrados em vídeo de violência desnecessária da polícia contra cidadãos negros, em sua maioria desarmados.

A trajetória do filme rumo ao Oscar ? do qual se tornou um favorito instantâneo pelo impacto da produção, que mostra algo raro em Hollywood, os escravos como agentes cruciais para a conquista da liberdade ? se complicou com a explosão na mídia de um caso, ocorrido em 1999, em que Parker foi acusado de estuprar uma mulher no campus da Universidade da Pensilvânia (em 2001, ele foi inocentado). Um arremedo de protesto em forma de boicote ao filme começou a tomar forma no mês passado.

Na entrevista coletiva de Toronto, o diretor foi questionado sobre a possível contradição entre um filme que gira em torno de profundas questões éticas e morais e o fato de Parker jamais ter pedido desculpas publicamente à mulher que o acusou e que acabou cometendo suicídio em 2012. O cineasta desviou do tema, dizendo não querer ?sequestrar o filme com minha vida pessoal?.

O ?Birth of a nation? original apresentava os afro-americanos como seres inferiores e aproveitadores, após a Guerra Civil Americana, das benesses do Estado. Os brancos, especialmente os sulistas, foram retratados como vítimas de um processo histórico irreversível e, no entanto, injusto. E uma ?nova nação? surgia da união de forças de brancos do Norte e do Sul contra minorias étnicas.

Já o filme de Parker, cristão devoto, apresenta Turner como um Jesus moderno e termina com o calvário do escravo e a histeria coletiva dos americanos brancos durante seu enforcamento público. Depois de uma sequência arrepiante em que crianças, mulheres e homens negros são enforcados por participarem da revolta, ao som de ?Strange fuit?, de Nina Simone, ele oferece uma ponte para a geração seguinte lutando na Guerra Civil e sugere que a busca pelos direitos civis dos negros não tem data para terminar. O elenco, majoritariamente formado por afro-americanos, conta ainda com Armie Hammer, como um senhor de escravos, e Jackie Earle Haley como o mais racista dos terríveis sulistas retratados no filme.

? A história da revolta dos negros sequer é estudada em nossas escolas. Hoje, há livros no Texas e no Mississippi que trocam a palavra ?escravo? por ?trabalhadores?. Também se tenta passar uma borracha nos nomes dos líderes de movimentos como o Black Lives Matter. Não é mero acaso. Dizer que a escravidão é uma mancha na História dos EUA é errado. Ela é a História dos EUA ? afirmou Parker.