Cotidiano

Crítica: Roberto Calasso resgata visão de mundo arcaica e original

34794506_PV Rio de Janeiro RJ 19-12-2012 Roberto Calasso escritor. Foto Divulgação.jpgRIO – O mais recente livro de Roberto Calasso, ?O ardor?, lançado na Itália
em 2010, trata dos textos do povo védico, que viveu no norte da Índia há mais de
três mil anos. Veda é o próprio saber, uma abstração que só podia ser sentida, e
não vista ou possuída. O instrumento utilizado para atingir essa abstração era o
soma, uma ?planta inebriante? que crescia no alto das montanhas e era usada nos
rituais. O pendor do povo védico para a abstração, no entanto, atingiu a própria
manutenção de seu legado, uma vez que não tinha interesse na construção de
templos, cidades ou monumentos ? deixou somente a tradição oral de seus hinos e
fórmulas, mais tarde registrados em escritos.

Tal tradição, afirma Calasso, é única. Egito, Mesopotâmia, China ou Grécia,
segundo ele, não ?podem oferecer algo que seja sequer remotamente comparável ao
corpus védico?, seja ?pelo rigor do sistema formal, pela exclusão de qualquer
quadro temporal, pela invasão ubíqua da liturgia?, seja ?pelo refinamento,
densidade e capciosidade das ligações internas entre suas diversas partes?.

Em entrevista ao jornal italiano ?La Reppublica?, Calasso disse que, diante
dos textos védicos, dois procedimentos são possíveis: encará-los como delírios,
uma das tantas ?aberrações da humanidade?, ou encará-los como portadores de
reflexões sobre temas que nos ocupam ainda hoje ? a vida, a consciência e a
convivência com outros seres. ?O ardor? toma a segunda via e o faz a partir do
duplo movimento de revelar didaticamente algo pouco conhecido ? a tradição
védica ? e de refletir sobre a dificuldade de tal revelação. Passando por nomes
como Schopenhauer, Proust, Homero, Kafka, entre tantos outros, Calasso mostra a
recorrência desse pensamento arcaico oriental na configuração das bases da
modernidade ocidental.

Um ?antídoto à existência?

Ao comentar a teoria do sacrifício de Marcel Mauss e Henri Hubert, por
exemplo, Calasso escreve que ?Mauss falava como um ritualista védico disfarçado
de jovem sociólogo da Escola de Durkheim?. Tratados compostos entre os séculos X
e VI a.C, como foi o caso dos ritualistas védicos, permaneceram de certa forma
latentes, esperando uma intervenção que reconhecesse suas potencialidades. ?Em
nenhum outro lugar a teoria do sacrifício foi elaborada, desdobrada e exposta
com tamanha perspicácia?, escreve Calasso. ?Todas as outras práticas e
descrições, na Polinésia ou na África, na Grécia ou na Palestina, são casos
particulares daquilo que se encontra nos meandros dos Brahmana?, incluindo
também aquilo que ainda hoje se divulga acerca das culturas orientais.

Não é de hoje que Calasso investiga tais conexões. ?O ardor? é a sétima parte
de uma constelação de trabalhos que começou em 1983, com ?La rovina de Kasch?, e
continuou com livros como ?Ka? e ?A folie Baudelaire?, já traduzidos no Brasil.
?Ka? e ?O ardor? são ambos sobre a Índia, embora a feição mais romanesca do
primeiro o aproxime de ?As núpcias de Cadmo? e ?Harmonia?, sobre a mitologia
grega, e a feição mais ensaística do segundo o aproxime de ?A folie Baudelaire?
ou de ?K.?, livro de 2002 dedicado a Kafka.

O que une os livros é certo desrespeito bastante produtivo da parte de
Calasso com relação às disciplinas e seus discursos, conceitos e palavras-chave.
Calasso é erudito e minucioso, e tem oferecido, ao longo de sua carreira,
trabalhos densos que demandam tempo e dedicação por parte do leitor. No entanto,
a leitura de seus livros é sempre fluida, e suas associações são instigantes ?
como aquela, em ?O ardor?, que leva de um comentário a respeito da divindade
Agni, do fogo, até uma carta de Flaubert e uma remissão a Ingeborg Bachmann ?, o
que se pode creditar à sua atuação como editor da ?Adelphi? há mais de 50
anos.

No último capítulo de ?O ardor?, Calasso fala do pensamento védico como ?um
antídoto poderoso à existência atual?, em grande parte ?inacessível e
incompreensível?, mas ativo o suficiente para abalar ?qualquer mente que não
esteja totalmente escravizada àquilo que a rodeia?. Abstraindo um pouco do
conteúdo desse livro específico, pode-se dizer que esse antídoto é também o
estilo de Calasso e a forma que deu ao conjunto de sua obra até aqui.

*Kelvin Falcão Klein é professor da Escola de Letras da UniRio