Cotidiano

Crítica: em ?Skeleton tree?, as veias abertas de Nick Cave

RIO – Músico que atravessou a chuva ácida do pós-punk e que destilou as mais venenosas baladas de piano da era moderna do rock, o australiano Nick Cave veio, ao longo dos últimos 30 anos, construindo uma reputação de grande poeta do lado escuro da vida. Assassinos, perdedores, apaixonados em desespero, muitos foram os personagens que povoaram suas canções, cantadas/narradas num barítono degradado (moldado a partir daquele de ídolos como Leonard Cohen e Scott Walker), em mais de uma dezena de álbuns com sua banda de fé, os Bad Seeds. Mas e quando a realidade se revela mais cruel do que a sua ficção? Aí é que entra ?Skeleton tree?. Links Nick Cave

Boa parte das canções estava composta quando o músico de 58 anos soube da morte do filho de 15, Arthur (ele caiu de um penhasco em julho do ano passado, em Brighton, após tomar LSD pela primeira vez com um colega de colégio). A reação de Nick Cave ao horror muito real (documentado no filme ?One more with feeling?, que chegou aos cinemas dos EUA e da Europa junto com ?Skeleton tree?, na sexta-feira) foi a de gravar o álbum mais visceral de sua carreira ? um disco sem paralelos, mesmo em relação aos de outros artistas.

Os Bad Seeds estão lá em ?Skeleton tree?, mas é como se não estivessem. Liderados pelo multi-instrumentista e grande parceiro de Cave Warren Ellis, eles ajudam a criar uma atmosfera fantasmagórica, cheia de interferências eletrônicas, nas quais os poucos elementos melódicos são dados por piano, guitarra ou violão. Em vez da catarse típica dos seus álbuns, o que existe lá é uma espécie de cerimonial. Uma missa, um réquiem num mundo impiedoso, ao qual o cantor responde sem a menor autocomiseração. Nick Cave & The Bad Seeds – ‘Jesus Alone’ (Official Video)

?Skeleton tree? abre em meio a teclados eletrônicos embebidos em distorção com ?Jesus alone?. Que seria apenas mais uma das faixas de inspiração bíblica de Nick Cave, não fosse pela frase de abertura: ?Você caiu do céu e se esborrachou num campo perto do Rio Adur.? O refrão (?com minha voz estou chamando você?), cantado sobre um piano grave, cordas e uma sinfonia de ruídos diversos, leva a canção para lados cada vez mais pessoais e dolorosos. Chega a ser um alívio quando ?Rings of Saturn? (com seus sintetizadores evocando sons do espaço sideral e acordes otimistas de piano) entra com sua dose de beleza para mitigar o sofrimento geral.

Melodias e um coro tentam estabelecer um certo contraponto, mas é de uma irremediável tristeza de que está falando a igualmente bela ?Girl in amber?, outra canção em que os versos exalam profecia em cada palavra: ?Eu sabia que o mundo ia parar de girar quando você se fosse / Eu costumava pensar que, quando morresse, você fosse tipo vagar pelo mundo / Não penso mais assim?. Com participação da soprano dinamarquesa Else Torp e um instrumental espartano, ?Distant sky? também transforma a devastação em comoção: ?Eles disseram que nossos deuses iriam sobreviver a nós, mas eles mentiram?.

Um disco literalmente no osso, ?Skeleton tree? faz com pouquíssimos recursos instrumentais o que alguns discos tentam, tentam e não conseguem. Uma de suas melhores faixas, ?Magneto? é quase que apenas uma coleção de climas ? e poucas vezes se transmitiu tanta desolação em uma só canção. ?Anthrocene?, por sua vez, usa de ambiências esfumaçadas e tensas (dignas de um disco do ex-Massive Attack Tricky) para compor um todo que vai aos poucos se dissolvendo e desabando, no ritmo do terrível verso ?todas as coisas que amamos, perdemos?. Nick Cave & The Bad Seeds – ‘I Need You’ (Official Video)

Uma experiência mais do que um álbum, ?Skeleton tree? tem, contudo, canções que sobrevivem fora do conjunto ? não que isso fosse necessário, é apenas mais um indicativo da grandeza da obra. Tocante e franca de doer, ?I need you? (?nada importa quando aquele que você ama se foi”) e a quase otimista faixa-título são candidatas a frequentar as listas de qualquer um daqueles corações dilacerados que buscam na música um espelho.

Cotação: ótimo