Cotidiano

?Creio que as mulheres estão em perigo?, diz protagonista de ?Paulina?

SÃO PAULO – Protagonista de “Paulina”, que estreou nesta quinta-feira nos cinemas, a atriz argentina Dolores Fonzi trava um diálogo difícil e longo com o pai, Fernando, um juiz temido e influente interpretado por Oscar Martinez, logo no início do filme. Paulina terminou a faculdade de Direito, mas quer dar aulas em comunidades pobres. Fernando prefere que a filha advogue e garanta, como ele planejou, seu futuro. Ela diz que pensou muito e não vai abrir mão de seu desejo. “Le quiero poner el cuerpo”, diz ela, com o sotaque portenho. Numa tradução livre, seria algo como: “Quero mergulhar de cabeça nisso”.

— A partir daí, ela passa o filme todo realmente agindo de acordo com o que disse ao pai, mergulhando não só de cabeça, mas de corpo inteiro, no sonho de educar pessoas de comunidades carentes — diz a atriz, que falou com exclusividade ao GLOBO, por telefone, de sua casa em Buenos Aires, sobre a experiência de interpretar a personagem. 

A imagem de Dolores explica muitas coisas sobre “Paulina”, ganhador do Grande Prêmio da Semana da Crítica e do Prêmio da Crítica no Festival de Cannes do ano passado. No filme, dirigido por Santiago Mitre, a personagem sofre um estupro coletivo, cometido por um grupo de rapazes do qual fazem parte seus próprios alunos. Depois do trauma e de descobrir que está grávida, ela volta a dar aula normalmente e decide não prestar queixas.

— Quando fiz o filme, até para manter o distanciamento, não a analisei ou julguei. Precisava disso para poder incorporar a personagem e agir de acordo com o que estava previsto no roteiro.

Dolores disse estar ciente do que aconteceu no Rio, há algumas semanas, quando uma adolescente de 16 anos sofreu um estupro coletivo. Ela não acompanhou a evolução do caso, que ainda está sob investigação da Polícia. Mas disse que ficou horrorizada:

— Sinto-me muito atingida,mesmo. Creio que as mulheres estão em perigo e os homens têm um problema. Mas se for pensar como mulher e mãe de um casal de filhos, o que posso fazer é ensiná-los desde cedo a mudar os paradigmas para que no futuro não tenhamos mais esse tipo de violência. E trabalhar, como uma pessoa famosa, a favor de causas que acho importantes, como o aborto legal.

“Paulina” é uma refilmagem de “La patota” (1960), dirigido por Daniel Tinayre. No original, a personagem, interpretada por Mirtha Legrand, mulher de Tinayre, também perdoa os agressores, mas sob influência da religião.

— Paulina age por ideologia, é diferente. Ela está em uma busca pessoal e quer lidar a seu modo com a tragédia. Sem a interferência do pai e nem com a ajuda da influência dele — explica Dolores.

A atriz conta que entrou no projeto com muitas dúvidas sobre Paulina e questionou Mitre sobre as razões e motivações dela para fazer o que fez. Na maior parte das vezes, o diretor respondia com um seco “não sei”. Até que, para ajudá-la, passou uma lição de casa: assistir a um filme, “O filho”, de Jean-Pierre e Luc Dardenne, no qual um professor de carpintaria serve como mentor do jovem responsável pela morte de seu filho.

— Quando a mulher percebe o que ele está fazendo e o questiona, ele responde apenas: “Não sei”. Ou seja, não dá para julgá-lo, porque não se sabe a dor que passou. O mesmo se passa com Paulina e ela diz exatamente isso para o pai: “A vítima sou eu, não você, sou eu quem decide”.

Dolores conta que, por causa de atrasos no início das filmagens, teve muito tempo para ensaiar e se preparar. Não conversou com vítimas de estupro, mas falou com pessoas que cuidaram de mulheres que passaram por essas agressões. Para fazer a cena da agressão, diz ela, houve uma dinâmica diferente, até para aproximá-la dos grupo de rapazes responsável pelo crume. Foram contratados dançarinos para dar aulas aos atores e não-atores que participam da cena.

— Fizemos muitas coreografias, que enfatizavam o contato dos corpos. No fim, quando fizemos a cena, tudo saiu perfeito. Originalmente, era um plano-sequência (uma cena longa e sem cortes). Mas na edição final, acabou ficando fragmentado. O que foi bom, porque o formato original era muito mais forte.