Cotidiano

Atores como Mateus Solano e Matheus Nachtergaele vivem personagens do sexo oposto

RIO ? Sapatinho de cristal é sapatinho de vitrine, não é sapatinho de ficar dançando. Machuca o pé, provoca joanete. Quem o diz é Mateus Solano, com a propriedade de quem encarna uma Cinderela de comportamento contemporâneo, cansada ?dessa história de carruagens e 12 badaladas?. ?Agora vou ser dona do meu tempo?, alardeia a personagem, rompendo com a edulcoração dos contos de fadas num dos seis vídeos que compõem a instalação ?Monólogos de gênero?. Links LGBT

O trabalho da artista Diana Blok, uruguaia radicada há mais de 40 anos em Amsterdã, poderá ser visto a partir das 19h de segunda-feira, no Oi Futuro Flamengo. Ele antecipa a programação do Tempo_Festival, evento de artes cênicas que será realizado de 9 a 18 de outubro.

Diana convidou seis atores para interpretar personagens do sexo oposto, para os quais teriam pouca possibilidade de serem escalados. Além de Solano, integram o trabalho Matheus Nachtergaele, que escolheu viver sua mãe, Maria Cecilia Nachtergaele; Grace Passô, no papel do ativista americano Martin Luther King Jr.; e Dani Barros, como o poeta e dramaturgo francês Antonin Artaud. A obra tem ainda a participação de dois holandeses: o veterano Cas Enklaar e a jovem Abke Haring. Enklaar vive Liuba Andrêievna, personagem de ?O jardim das cerejeiras?, de Tchekhov; Abke, Hamlet, de Shakespeare.

? Acho importante que nós possamos nos identificar com o outro gênero e incorporar essa compreensão do outro dentro de nós ? diz Diana. ? A desigualdade é enorme no trabalho, na política, na vida cotidiana. Na Holanda essa consciência sobre gênero e igualdade de gênero está mais avançada, mas em lugares como o Brasil a mulher está numa posição ainda muito inferior. Quando almoço em casa de amigas brasileiras com filhos homens, percebo que eles, por exemplo, não recolhem seus pratos à cozinha. Continuam a ser servidos pelas mulheres.

Mateus Solano encarna Cinderela

Na videoinstalação de Diana, os textos que confrontam o visitante com essa questão foram alinhavados por Glauber Coradesqui, dramaturgo e professor de teatro na Universidade de Brasília, a partir do desejo de fala de cada ator. A exceção é o de Nachtergaele, que criou o seu a partir do espetáculo ?Conscerto do desejo?. Como ele, cada um teve uma motivação particular em sua escolha. Grace Passô, por exemplo, faz uma transposição do mítico discurso ?I have a dream? (1963) para uma situação contemporânea de preconceito racial e violência. Já Abke pediu para fazer Hamlet quase como forma de se reconciliar com o personagem. De visual andrógino, a atriz da mais importante companhia da Holanda, Toneelgroep Amsterdam (TGA), viveu o protagonista da peça de William Shakespeare no início de uma gravidez. Sofreu em cena com os enjoos, não ficou totalmente satisfeita com o trabalho, e, ao receber o convite, viu nele uma segunda chance. Solano, depois de pensar em algumas opções, como a bíblica Eva, decidiu-se pela história da jovem martirizada pela madrasta que encontra sua salvação no príncipe encantado.

? Fiquei com a Cinderela porque minha relação com o lúdico é forte, e os contos de fadas fazem parte da minha construção ? afirma o ator. ? E, dentro dessa pegada de feminismo, a Cinderela é a mulher contra a qual a gente está lutando: a mulher-princesa, à procura de um príncipe que vai transformar a sua vida. Também queria algo que tivesse humor, e busquei um tom ácido para interpretá-la.

O trabalho de Diana é composto de seis telas, de 2m de altura por 1,5m de largura, dispostas numa sala como numa caixa cênica. Para que funcionassem realmente como uma obra única, e não seis vídeos independentes, o pesquisador de mídias interativas Pawel Pokutycki, parceiro da fotógrafa no trabalho, criou uma solução engenhosa: cada um dos atores foi filmado falando seu texto (aproximadamente 5 minutos) e, em seguida, em silêncio, por 25 minutos, enquanto os outros dizem os seus.

Matheus Nachtergaele reinterpreta a própria mãe, Maria Cecília

? Foi uma experiência única para todos os atores, nenhum deles jamais havia ficado em silêncio por tanto tempo para uma câmera. Quando você entra na sala, há um deles falando. Os outros ouvem, como o visitante ? observa a artista.

Tema premente na sociedade contemporânea, as questões de gênero desde cedo estiveram presentes na vida de Diana Blok. Nascida em 1952 em Montevidéu, ela viu o pai, diplomata holandês, defender posições feministas enquanto a mãe, de família tradicional argentina, passava ao largo desses assuntos. Depois de cursar Sociologia no México, ela se mudou para a Holanda em 1976, onde estudou História da Arte e se decidiu pela fotografia como meio de expressar sua vocação artística. O primeiro trabalho foram autorretratos performáticos, em que, de bigodes, interpretava o próprio pai.

? Era algo ainda ingênuo da juventude, mas ao longo dos anos, essas questões voltaram com força ? conta ela.

Mais tarde, por exemplo, tratou de identidade e diversidade das relações afetivas ao conectar o universo de travestis, transexuais e homossexuais masculinos e femininos da Turquia e do Brasil nos projetos fotográficos ?See through us? (Istambul, 2008) e ?Eu te desafio a me amar? (Rio, 2013). O trabalho que apresenta no Oi Futuro nasceu como desdobramento de um projeto anterior, ?Adventures in cross-casting?, criado em 1996 para inaugurar uma nova sala no Theater Instituut Nederland. Diana fotografou atores caracterizados como personagens do sexo oposto.

Grace Passô como Martin Luther King

Em 2013, foi convidada pelo festival Cena Contemporânea, em Brasília, a produzir o mesmo trabalho aqui, e fotografou 30 atores. Enrique Diaz (Maria Antonieta), Michel Melamed (Iemanjá), Eliane Giardini (Lampião), Evandro Mesquita (Maria Bonita), Bárbara Paz (Andy Warhol) e Camila Pitanga (Poseidon) foram alguns dos nomes. No ano seguinte, as fotos em grande formato povoaram a orla da Zona Sul do Rio, no âmbito do Tempo_Festival. Foi ao observar o elenco estelar se preparando para cada clique que teve a ideia do trabalho atual.

? Cada um deles, ao chegar, fazia uma pequena elaboração para entrar no personagem. Ou falando um texto, ou ouvindo música, como uma ária de Maria Callas (personagem de Fernando Eiras). Vi isso e achei extremamente fílmico ? diz.

O Brasil é a plataforma de lançamento desse novo projeto, para o qual Diana promete continuidade.

? ?Monólogos de gênero? é um plano-piloto. A partir daqui, a ideia é que seja internacional, um projeto global, em países onde haja uma cultura grande de telenovela e cinema. Dani Barros como o poeta e dramaturgo francês Antonin Artaud

?Monólogos de gênero?

Onde: Oi Futuro Flamengo ? Rua Dois de Dezembro 63, Flamengo (3131-6060).

Quando: A partir do dia 19, às 19h30m.

Ter. a dom., das 11h às 20h. Até 13/11.

Quanto: Grátis.

Classificação: Livre.