Cotidiano

Aos 70 anos, João Bosco prepara o primeiro disco de inéditas desde 2009

João Bosco tem dois projetos de discos encaminhados ? um de inéditas, outro de releituras próprias de canções alheias. Quando se pergunta a ele se os álbuns são sua forma de celebrar os 70 anos, que completa hoje, ele nega ? com a naturalidade de quem nem vê muito sentido na ideia:

? Esses discos não são pelos 70, mas para celebrar o fato de seguir com vontade ? explica Bosco, por telefone, de Lisboa, para onde foi passar a semana de seu aniversário depois de ter tocado em Montreux, no domingo. ? O que realmente acho importante não é a idade, mas o desejo de seguir, de fazer música. De estar viajando, tocando, compondo, indo atrás dela. Isso você pode ter aos 40, 50, 70, 80. A minha idade é essa. A música representa quase tudo pra mim, sem ela eu não saberia o que fazer, nem como iria me sentir, porque até agora a vontade não me abandonou. João Ubaldo, meu amigo, dizia: a vontade pode. Ter vontade faz você conseguir. É o que eu diria ao jovem João Bosco e é o que eu, aos 70, procuro lembrar todo dia.

A vontade segue, o violão se mantém grudado ao peito em casa, mas o compositor explica que a relação com a música ganha outras camadas com o passar dos anos:

? A idade é isso, você demora mais pra se sentir satisfeito com o que faz. Você desvia muito mais da música do que a encontra ? define. ? Você se depara com ela e pensa: ?isso aqui eu já fiz?. Você fica mais exigente. As músicas vão chegando, mas elas exigem um tempo pra você ver se é isso mesmo, se aquilo te interessa.

Nessa depuração, Bosco usa um método que traz desde o início de seu caminho como compositor. Nunca usou gravador para registrar novas canções, ideias, fragmentos. Parte do princípio de que, se uma música permanece na sua mente, se ela fica, é porque tem a força para continuar viva. Se ela se perdeu no esquecimento, é porque esse seria seu destino mesmo.

Sem gravar nada, cada vez mais exigente, Bosco segue produzindo ? muito, sublinha. Mas com a tranquilidade dessa filtragem que o tempo impõe. Seu mais recente disco de inéditas é ?Não vou pro céu, mas já não vivo no chão?, de 2009. Agora, ele junta novas para um disco que pretende pôr na rua no início de 2017. São parcerias com Aldir Blanc (?Fizemos uma, temos outra caminhando pro final?) e seu filho Francisco Bosco (?Ele também entregou duas?). Há outros parceiros, mas João prefere não adiantar:

? Não vou falar pra eles não se sentirem pressionados (risos).

O outro projeto ? pela celebração da vontade aos 70 ? é ?Passagem de som?, no qual recria músicas de que gosta e que toca em casa. A ideia nasceu de uma sugestão de Francisco Bosco, quando João foi convidado a fazer um show em Inhotim. Agora ele quer registrar o resultado, uma espécie de segundo volume de seu ?Dá licença meu senhor?, de 1995 ? no disco, ele lançava seu olhar sobre músicas como ?Vatapá?, de Caymmi, e ?Expresso 2222?, de Gilberto Gil. Desta vez, o repertório é igualmente livre (?São canções que vão me encontrando?):

? Toco ?Noite cheia de estrelas?, do Cândido das Neves, ?Coisa nº 2?, de Moacir Santos, ?My favorite things?, Mancini… Canções que vêm, como quando componho. É como diz ?Misteriosamente?, que fiz com Antonio Cicero e Waly Salomão: ?É noite alta e quente e não vou mais dormir/ Pois uma canção/ Insiste em surgir/ Misteriosamente?.

O exercício de se apropriar de uma canção de outro compositor estaria na lista ?my favorite things? de Bosco. E é uma das práticas que melhor refletem o acúmulo do tempo nele, em sua abordagem da música. Ele cita o exemplo mais recente, quando, no Prêmio da Música Brasileira em tributo a Gonzaguinha, reinventou ?Galope?:

? Quando você pega uma música assim, você fica semanas. Larga por uns dias, retoma, ela vai se formando. Talvez aos 20 anos eu tivesse feito no mesmo dia. Mas me demorei. Dei a ela espaços harmônicos que não havia, juntando isso a uma rítmica que não se repetia. É uma história que você só pode contar num certo ponto da sua vida ? avalia, lembrando que carrega com ele muitos que vieram antes e mesmo contemporâneos. ? O negócio do violão é uma herança muito forte, que vem de Caymmi, Baden, Gil…

LAMENTO, ELE SÓ GUARDA UM

Assim como os colegas citados, Bosco é fundador de uma escola de violão própria. Sua sofisticação podia tê-lo jogado no caminho do artista difícil, hermético. Mas, quando ele lista discos que o formaram, que unem complexidade e comunicação, deixa claro que sua estrada estava marcada para ser outra:

? ?Você ainda não ouviu nada?, do Sergio Mendes, tem um encontro de músicos do nível daquele dos Beatles. ?The composer of ?Desafinado? plays?, de Tom, é outra aula. Tom toca piano só com a mão direita, pra não pesar com o violão nos arranjos suaves de Claus Ogerman. ?Canções praieiras?, de Caymmi, tem um violão que cria cenas. O ?Coisas?, do Moacir Santos, o ?Time out? e o ?Time further out?, ambos do Dave Brubeck, são discos muito inquietos ritmicamente, mas você ouve e entende tudo. O artista não tem que esconder, tem que clarear.

Da longa estrada, Bosco acumula o orgulho dos encontros com o padrinho Vinicius de Moraes, o parceiro Aldir, Elis Regina (que o projetou) e Tom ? sua primeira gravação, ?Agnus sei?, com Aldir, era lado B do ?Disco de bolso? do Pasquim que tinha ?Águas de março? no lado A. Se guarda algum lamento? Só um:

? O ?Lamento? de Pixinguinha e Vinicius, no meu iPod.