Cotidiano

Andrea Mazzucchi, filólogo: 'Dante nos indaga: do que de fato precisamos?'

“Sou graduado em filologia dantesca pela Universidade de Nápoles Federico II, onde nasci e dou aulas, e doutor no mesmo tema pela Universidade de Florença. Pelo meu envolvimento, fui comissionado para coordenar as comemorações dos 700 anos da morte do autor da ‘Divina comédia’, que se celebram em 2021.”

Conte algo que não sei.

O ator Roberto Benigni, muito conhecido por “A vida é bela” (1998) é um dos melhores declamadores de Dante. Houve um evento para comemorar os 750 anos de nascimento do poeta, transmitido pela RAI 1, a principal emissora de TV da Itália, em horário nobre, e foi um sucesso impressionante.

O que diria para atrair o brasileiro que gosta de poesia, mas que tem medo de um texto tão antigo quanto a “Divina comédia”?

É verdade, se trata de um texto antigo, escrito em 1321. Mas é extraordinariamente moderno e popular, que se presta a ser lido como um enorme atlas da alma humana. Uma série de sentimentos universais, que se referem ao nosso senso de culpa, a nossa perspectiva de modificar o que não nos parece bem, a vontade de intervenção política e cidadã, e a capacidade de ler os sentimentos mais obscuros, ambíguos ou, se preferir, corrompidos. E mesmo que alguém não seja tão sensível à literatura, não poderá permanecer indiferente ao discurso de Ulisses, quando convida seus companheiros à superação de limites, porque “não fostes feitos a viver como brutos, mas para buscar virtude e conhecimento”, uma imensa declaração de confiança na natureza humana.

Em que trecho isto se dá?

É o Canto XXVI do “Inferno”, em que depois da Guerra de Troia, Dante imagina Ulisses levando seus guerreiros para além das portas de Hércules, no estreito de Gibraltar, que eram tidas como “o fim do mundo”.

Mas e como ler isso à luz de um momento em que se discute “pós-verdade” e outros sinais que demonstram mais vontade de confirmação de convicções do que uma busca honesta por conhecimento?

O maior problema é que não se consegue mais raciocinar em termos de comunidade; apenas em individualismos. É nessa hora que a “Comédia” se torna uma provocação: pela alteridade que ela proporciona, ela nos indaga o que é que nós de fato precisamos. Já no caso de Dante, a preocupação era de um senso de comunidade.

Por que ele tinha essa necessidade de comunidade?

Porque Dante foi um exilado. Na primeira etapa da vida ele foi muito político e alcançou o mais alto cargo político de Florença. Ficou nele por um ano, depois foi derrubado e, por fim, exilado. Aí, ele se isola e começa a criar uma utopia ? e talvez tenha mesmo enlouquecido ?, mas, enfim, ele cria uma visão de renovação radical do mundo através de uma nova comunidade. O projeto é o de renovar a sociedade, e é por isso que a “Comédia” descreve tanto a sociedade em que ele vive, com uma potência fantástica impressionante.

O que podemos esperar das comemorações do setecentenário de Dante na Itália?

Desde 2015, ano 750 de Dante, a ideia era que o programa se estendesse até 2021. Estamos preparando uma nova edição integral comentada, e que também queremos verter ao português, e é por isso que estamos fazendo contatos com UFRJ e outras universidades daqui. São 15 volumes que tratam do ponto de vista mais avançado dos estudos dantescos. Na parte ítalo-brasileira, queremos não apenas traduzir e comentar, mas também identificar a influência de Dante no Brasil, o que se percebe do século 19 em diante, com notável interesse do poeta Haroldo de Campos (1929-2003).