Cotidiano

Análise: Trump soube inspirar e capturar o eleitorado

USA-ELECTION_TRUMPMuita análise ainda precisa ser feita sobre os dados do mapa eleitoral dos EUA para se entender toda a dimensão da vitória inequívoca do candidato republicano Donald J. Trump, 70 anos, na eleição presidencial de 2016. Mas uma coisa é líquida e certa: o magnata bilionário soube inspirar e capturar o eleitorado, criando uma nova coalizão eleitoral, capitaneada por brancos menos escolarizados e a classe baixa em geral. Isso está expresso no rolo compressor que ele passou nos EUA, contra chance nunca superior a 40% nos modelos de projeção; levando todos os estados sem coloração partidária definida relevantes (Flórida e Carolina do Norte notadamente) e derrubando as muralhas em três estados solidamente democratas há três décadas: Wisconsin, Michigan e Pensilvânia.

Como isso aconteceu?

Antes de mais nada, Trump pode ser considerado o homem certo para o momento histórico. Os EUA vivem fadiga e ojeriza inéditos em relação ao sistema político. Na conta do chamado establishment, são creditadas brigas partidárias que só atrasam a tomada de decisões em benefício do cidadão, uma tendência irresistível a atender os interesses da elite financeira, corporativa e política e uma dificuldade patológica de não atacar problemas reais das famílias. Neste contexto, Trump é o outsider — nunca teve cargo público, sequer foi recruta militar. É empresário, gente que faz. A democrata Hillary Clinton é o oposto: 100% insider, mulher do sistema há mais de 30 anos. Trump — nada enebriado, como os democratas, pelos avanços reais dos últimos 8 anos de Barack Obama — soube ler com precisão essa insatisfação sufocante de uma parcela considerável do eleitorado. Mais: soube entender que a mensagem que sintetiza essa insatisfação não é o ataque a direitos civis, políticas e ideias progressistas, bandeira do Tea Party replicada pela cúpula republicana nos pleitos de 2010, 2012 e 2014 com sucesso parcial. É a economia, estúpido! (como diria um famoso democrata). É a desigualdade crescente, os custos maiores com plano de saúde (Obamacare), a capacidade de poupança nunca recuperada desde a crise. Mais precisamente, é a globalização que rouba empregos industriais há décadas, empobrecendo a classe média trabalhadora, do chão de fábrica, das posições médias nas empresas.

São primordialmente os brancos sem-diploma universitário, aquela classe média do sonho americano das décadas de 40 e 50, que quer o sonho de volta. Trump prometeu devolvê-lo. Make America great again! (slogan de campanha do magnata). Para se ter uma ideia da força da mensagem, o republicano cresceu até 50 pontos entre os homems brancos sem diploma, na comparação com 2012, ficando como votos que foram de Obama há 8 e 4 anos!!!!!!!! Essa massa de iludidos está concentrada fora dos grandes centros urbanos e cinturões metropolitanos, nos quais os democratas continuaram reinando, mesmo na Flórida e na Carolina do Norte. O problema é que Hillary Clinton não conseguiu animar os eleitores das metrópoles a votarem como Obama fez nas duas eleições passadas, e saiu-se pior nestas áreas mesmo as tendo vencido.

Além disso, Trump chegou a aumentar sua votação em 20, 30, 40 pontos percentuais nas médias e pequenas cidades e nas zonas rurais, na comparação com o desempenho republicano de 2012. Isso foi particularmente verdade no chamado paredão democrata industrial, formado pelos estados de Wisconsin, Michigan e Pensilvânia. É onde estão as regiões mais atingidas pela Grande Recessão de 2008 _ numa ironia sem fim, já que aquela foi uma crise produzida pela desregulamentação excessiva que começou com Ronald Reagan e foi estancada por políticas de Barack Obama. São também as áreas vulneráveis à globalização, à transferência de fábricas inteiras e linhas de produção ao exterior. Não à toa, Bernie Sanders, com seu discurso protecionista, derrotou Hillary Clinton nas primárias nesses estados. Outro fenômeno foi o voto das minorias e das mulheres, a turma da mudança demográfica em curso nos EUA. Depois dos ataques de Trump, esperava-se que fosse elevada a votação feminina, especialmente entre as universitárias e com diploma, em Hillary. Porém, as mulheres brancas sem nível superior seguiram a divisão de classe social que pautou o resultado geral e votaram em massa em Trump, desempatando o jogo.

Já negros, latinos e asiáticos nem compareceram às urnas como se esperava e a votação antecipada sugeria. E, uma vez com a cédula na mão, essa frente da nova demografia não escolheu Hillary na proporção que se imaginava. A votação dos hispânicos, ameaçados de deportação em massa pelo republicano, chegou a cair 17 pontos na comparação com Obama 2012!!!!!!! Ou seja: Hillary não conseguiu manter a coalizão vitoriosa de Obama e tampouco construiu uma para chamar de sua. A base que ela acreditava ter era terreno movediço. E como as pesquisas, os modelos de projeção e os levantamentos dos democratas e dos próprios republicanos não viram nada disso?!? Realmente, será necessária profunda análise. Há, porém, algumas indicações.

Primeiro, o nível de indecisos era muito alto, 12%. Na onda, foram de Trump. Também havia muito “voto escondido”, envergonhado, que a cartada do FBI com ameaça de nova investigação liberou para Trump.

Segundo, as pesquisa/modelos incorporam o padrão de comparecimento às urnas e voto das últimas eleições, que “vicia” os modelos e dificulta a captura de surpresas/ondas.

Terceiro, os modelos incorporavam uma rejeição a Trump muito grande. De fato, 61% dos que votaram ontem acham que ele não é qualificado o suficiente e 63% acham que ele não tem temperamento pra ser comandante-em-chefe. O problema é que acharam que ele merece uma chance de “make a America great again” mesmo assim pelo “novo”.

Quarto, a esquerda democrata tinha razão: Hillary Clinton não inspira ninguém, é uma candidata que “não desce goela abaixo”, em quem ninguém confia. Não era a candidat para o momento de desilusão com o establishment.

Quinto, a gigantesca operação de campo de Hillary falhou inacreditavelmente. Não detectou problemas estruturais sérios em seu próprio campo de ataque (Wisconsin, Pensilvânia, Michigan, New Hampshire). Tanto é verdade que não viram nada do que acontecia que Hillary seuqer pôs os pés em Wisconsin, por exemplo. Na Pensilvânia, onde encerrou a campanha ao lado do marido e dos Obama, tudo indica que percebeu tarde demais.

Muitos pontos mais ainda serão adicionados à lista. Todos terão contribuído à maior hecatombe política da História eleitoral americana.